INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

A realidade como “abismo”: Fotografias de Fabiana W.

Anita Prado Koneski

Segundo Blanchot (1987) produzir imagens é dispor as formas sob o fascínio, lugar que as imagens tornam-se “dito” essencial, ou seja, elas não nos dão mais as coisas na própria presença delas, mas “fá-las desaparecer; ela é sempre alusiva, sugestiva, evocativa” (BLANCHOT, 1987, p. 32). Imagens que “murmuram” a perda das coisas e marcam o lugar dessa perda. Imagens “vestígios” da ausência de uma presença. É por esse viés que vislumbro a possibilidade de pensar as imagens fotográficas de Fabiana W.

As imagens produzidas por Fabiana W são, a meu ver, esse “dito” essencial, que prefere falar do mundo pelo avesso, fazendo desaparecer a versão real que encontramos no direito do mundo que nos rodeia. Nelas a tessitura do que é “dito” vai mais além e passamos a constatá-lo no avesso do que foi tecido. Ou seja, as imagens passam a “dizer” pelo que não foi dito, pelo que nelas faz ruído. Resulta que essas imagens falam pelo jogo do estranhamento na medida, que nos angustiam e nos fascinam, simultaneamente. Não posso deixar de confessar o quanto essas imagens me causam estranhamento e instigam a minha percepção. Principalmente as obras relacionadas à série natureza: oitavo andar, 2006 e o díptico, Azul Marinho, 2007.

Fabiana Wielewicki. sem título (da série 2ª natureza: 8º andar), 2006.  Fotografia, 80 x 105 cm
Fabiana Wielewicki. sem título (da série 2ª natureza: 8º andar), 2006. Fotografia, 80 x 105 cm
Fabiana Wielewicki. Azul marinho: díptico, 2007.   Fotografia. 50 x 70 (cada)
Fabiana Wielewicki. Azul marinho: díptico, 2007.
Fotografia. 50 x 70 (cada)

Nas obras citadas, a meu ver, o real desaparece e o que se faz “mostração” é o lugar da ausência da presença do real, como se refere Blanchot (1987) ao falar da obra de arte como o outro do mundo. Nas imagens produzidas por Fabiana “o mundo recua, e as metas cessam; nela o mundo cala-se; os seres em suas preocupações, desígnios, suas atividades, não são, finalmente quem fala” (BLANCHOT, 1987, p.34-35) Assim, o que resulta dessa ausência do real é o fascínio na impossibilidade de conferir as imagens qualquer verdade. São imagens que jogam com as possibilidades combinatórias colhidas na existência do dia a dia do indivíduo contemporâneo num lugar de difícil acesso, ou seja, lugar em que a realidade passa a mostra-se pelo avesso. Ou seja, no momento em que questionamos a possibilidade da realidade mesma.

Nas imagens da artista a justaposição das imagens conspira com o enigma e o fascínio da “desaparição” do real e nos conferem a experiência com o Infinito. O Infinito é um conceito no pensamento de Blanchot (1987) e de Levinas (2000), em que este é a presença de “algo” onde toda a medida de estranheza é dada. Trata-se de uma relação com a exterioridade radical, com o que está para além de qualquer familiaridade. O cotidiano do real, nas imagens fotográficas de Fabiana se desfamiliarizam. Nelas os códigos habituais perdem a validade e somos levados a fazer uma experiência com o diferente. Surge a indagação: O que é o real? Vivemos num universo cada vez mais artificialmente construído, isso gera a necessidade de uma retomada da natureza. Assim, as imagens de Fabiana apontam para a questão trilhando os caminhos da desconstrução do real. Fazem da desconstrução um Infinito, onde os “ruídos” fazem eco, ou deixam “vestígios”, se preferirmos a linguagem levinasiana, na multiplicidade simultânea das faces do real que apresentam.

Nas imagens da artista temos os deslocamentos de lugares e de leituras que nos perturbam e nos lançam no abismo da “noite” ( Infinito). Segundo Blanchot (1987) esse é o lugar do “dito” essencial, lugar em que não somos mais devolvidos ao mundo, nem como metas, nem como abrigo, nem como esperança, ao contrário, espaço em que a existência mergulha no “vazio”. Porém, um vazio onde há sons, embora não saibamos de onde eles vêm. São “ruídos” que repercutem em nossa existência de indivíduos contemporâneos e instalam uma relação com o diferente. Ou seja, um modo “outro” de nos relacionarmos com o mundo.

Desta forma não há como fazer um relato, uma interpretação, uma análise dessas imagens para torná-las familiares, pois elas parecem se esquivar sempre. Esquivam-se através das infinitas possibilidades que lhes são inerentes. Para Blanchot tais obras nos dão uma experiência noturna. Diz Blanchot (1987, p. 163): “A noite é o aparecimento de ‘tudo desapareceu’ […] o invisível é então o que não se pode deixar de ver, o incessante que se faz ver”. Ao tratá-las como imagens da “noite” não afirmamos que elas não tenham sido geradas no dia, engendradas na luta dos indivíduos, no labutar do dia a dia, nas perdas e nos ganhos, enfim na materialidade da existência. Foi na “luz” que Fabiana W. gerou suas imagens. Porém, como todo artista que está sempre a beira do abismo, Fabiana as realiza como “o outro do mundo” e as mantém no jogo enigmático do estranhamento. Ou seja, constamos um jogo entre a imagem e o real, em que a imagem se impõe para além de todo saber.

A meu ver Fabiana foi mestre na “busca” pelo centro da ambigüidade mesma da imagem. A artista realiza a perda, a morte da realidade, para que esta se faça esse “Outro do mundo” e para que na perda, “na ausência”, incite em nós o fascínio por uma realidade “outra” que ali se realiza. Realidade bem mais reflexiva, dentro de “outro” molde, ou, digamos, da ausência de qualquer molde.

Observamos que a presença do corpo é uma constante nas fotografias citadas. Ele marca o espaço do produtor de imagens e para quem não sabe, ele é o corpo da própria artista. Um corpo que, a meu ver, testemunha o jogo entre a imagem e o real, não para conferir clareza às coisas, mas pelo contrário, para testemunhar a impossibilidade de inferir qualquer verdade ao que vemos. O que é real ali? O que pensar do real? O que nos resta de um real que já não temos mais referências? O corpo “atual” merleaupontyano, que sustenta e garante as relações intramundanas entre si e as coisas externas, alí, presente nas imagens da artista nada garante, ele é parte do jogo enigmático da composição das formas. Ele é enigma.

Estamos diante de uma experiência que só se realiza pela “desaparição”, e, portanto, funda um campo de forças com tamanha fecundidade que nos fascina, e nos angustia, simultaneamente, cumprindo sua função contemporânea de obra de arte.

Anita Prado Koneski
Profª do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

___________, Maurice. La bestia de Lascaux. El último em habla. Madrid: Tecnos, 1999.

LEVINAS, Emmanuel. De outro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca, Espanha: Sigueme, 2003.

_________, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa:Edições 70, 2000.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Abril, 1975(Os Pensadores)