A criação do Museu Victor Meirelles (1), que chega agora a seus 50 anos, não se recorta como gesto circunstancial e solitário no seu tempo. Ao contrário: a atmosfera de ebulição cultural, política e social, que já se esboçava no Brasil na Semana de Arte Moderna, em 1922, se dinamizou ainda mais nos anos 30, e é nesse cenário que um grupo de intelectuais se reuniu em torno de uma proposta de proteger e preservar os bens patrimoniais do país. Iniciaram-se os tombamentos de grandes monumentos, como fortalezas e sítios arqueológicos, e surgiu a iniciativa de criar uma série de museus espalhados em todo o território nacional, dentro de uma política mais ampla de preservação. Uma figura central nesse movimento foi Rodrigo Melo Franco de Andrade, fundador e durante 30 anos diretor-geral do órgão federal de preservação do patrimônio cultural, o então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN. Em torno dele, se organizaram vários projetos de museus e desde o final dos anos 30 podem ser encontrados nos arquivos da instituição documentos pedindo dotações orçamentárias para adquirir a casa em que nasceu, em Florianópolis, o mais destacado pintor brasileiro do século XIX, Victor Meirelles (2).
O projeto do museu foi trabalhado de forma sólida e constante. Procurava concretizar a compra da casa natal do pintor e ao mesmo tempo montar um bom acervo inicial. Havia uma idéia clara de como esse acervo podia ser formado:
[…] a produção de Victor Meirelles foi tão abundante, que haverá sempre em poder de particulares um número considerável de quadros seus, cuja compra paulatina se recomenda, por todos os motivos, e que viriam a constituir a coleção do museu alvitrado. E mesmo que não se adquirisse no mercado tela alguma do grande pintor, o próprio Museu Nacional de Belas Artes poderia, sem o menor prejuízo, ceder um certo número de suas obras para o novo estabelecer, uma vez que as possui em profusão […] (3)
Foram, sem dúvida, décadas férteis para a maturação dos projetos de museus. Em São Paulo surgia o Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1947, e o Museu de Arte Moderna (MAM), em 1948; em Florianópolis, em 1949, também era criado um museu de arte moderna, atual Museu de Arte de Santa Catarina (MASC). Pois Rodrigo Melo Franco perseguiu incansável, durante anos, a implementação de seu idealizado conjunto de museus locais. Ainda em 1945 insistia com o ministro Gustavo Capanema, da Educação e Saúde, pela autorização definitiva para projetos como o Museu da Inconfidência, o Museu Imperial, o Museu das Bandeiras, o Museu das Missões, o Museu do Ouro e, entre eles, “um pequeno Museu Victor Meirelles, a ser instalado em Florianópolis, na casa onde nasceu esse mestre ilustre da pintura brasileira” (4).
A casa, um sobrado tipicamente luso-brasileiro, tinha sido construída entre o final do século XVIII e o começo do século XIX. Foi armazém de secos e molhados: no térreo o comerciante Antônio Meirelles de Lima, pai de Victor, tocava seu negócio. A família morava no piso superior, e foi ali que Victor Meirelles de Lima nasceu, em 1832. O plano de fazer da casa um museu foi aprovado e posto em marcha ainda na era Vargas, mas demorou algum tempo para deslanchar. Foi uma ameaça de demolição que fez com que o projeto fosse retomado com mais veemência: construída muito antes da proliferação dos automóveis, a casa agora estrangulava a rua e deveria dar lugar ao tráfego. Rodrigo Melo Franco enviou a Florianópolis um de seus colaboradores no SPHAN, Alfredo Teodoro Rusins, conservador e secretário do Museu Imperial em Petrópolis (RJ), com a missão de conseguir sustar junto ao interventor federal em Santa Catarina a idéia da demolição. Rusins deveria ainda localizar o proprietário da casa e negociar o seu preço. Ao final, ele se tornaria também o responsável direto pela transformação prática da casa num museu.
Rusins se entendeu com Ivo de Aquino, secretário estadual de Segurança e Educação, que lhe prometeu não derrubar a casa, e contatou o seu proprietário, Nicolau Camariére, “um ancião, italiano de nascimento, mas que passou quase toda sua vida em Florianópolis” (5). A história trágica deste imigrante é entrevista no relatório de viagem feito por Rusins, acrescentando riqueza humana à história da velha casa (6). Camariére herdara a casa do avô, Victor Sanseverino, e era seu proprietário havia 50 anos. Não lhe tinha feito nenhuma alteração física substancial e a alugava por Cr$ 200,00 mensais. Ficava na esquina das ruas que se chamavam, na época de sua construção, do Açougue e da Pedreira, atuais Victor Meirelles e Saldanha Marinho, a 50 metros da praça que sempre foi o coração da cidade, o antigo Largo da Matriz de Desterro, atual Praça XV de Novembro. Sua arquitetura apresenta as características básicas das casas da época: alvenaria de pedra, tijolos e estuque; portas, janelas, soalho e escada feitos em canela. Por dentro, sobressaem as salas interligadas por um corredor e uma alcova; por fora, sua implantação sobre o alinhamento da rua, sem recuos, a cobertura em telha de cerâmica em forma de capa e canal, os beirais do tipo beira-seveira, as janelas com postigos cegos de madeira. Manteve-se como uma das poucas edificações de estilo claramente oitocentista preservadas em Florianópolis.
Por um cálculo muito pessoal, Camariére chegou ao valor de Cr$ 35.000,00 pela venda da casa. Rusins sondou pela cidade e considerou o preço justo, que seria para o SPHAN “ótima transação tanto do ponto de vista comercial como ainda do histórico”. A rigor, a iniciativa e os procedimentos para aquisição da casa natal de Victor Meirelles ocorreram em ação vertical, desenvolvida na esfera do SPHAN e do Ministério da Educação e Saúde. Mas na época também havia alguma efervescência cultural em Florianópolis e ocorreram mobilizações para fazer da casa um museu de arte. Por iniciativa do escultor Moacir Fernandes de Figueiredo, os sócios do Instituto Histórico e Geográfico chegaram a rascunhar uma proposta para viabilizar a compra, enquanto a imprensa e o círculo de intelectuais reunido em torno do Grupo Sul repercutiam a importância do projeto, seus prazos, características e acervo.
Em 20 de julho de 1945 Rodrigo Melo Franco informou a Gustavo Capanema os resultados da viagem de Rusins e mais uma vez pedia que a União adquirisse a casa, pelos Cr$ 35.000,00. Os trâmites seguem por mais meio ano, a compra é aprovada em 24 de janeiro de 1946, mas o Ministério da Fazenda precisa ainda abrir um crédito especial para efetuá-la. Finalmente, em 22 de fevereiro de 1946 (exatamente 43 anos após a morte do pintor) o presidente Eurico Gaspar Dutra assinava o Decreto-Lei nº 9.014, que “[a]utoriza a aquisição da casa em que nasceu Victor Meirelles e outras providências”. E em 2 de junho de 1946 era lavrada, no 1º Ofício de Notas de Florianópolis, a escritura de compra e venda da casa e do respectivo terreno, com 132 metros quadrados de área. A escritura foi registrada no mesmo Ofício, na folha 145 do livro 3E, sob o nº 5.555, em 30 de julho de 1946. A casa natal de Victor Meirelles era, a partir de então, da União. Quatro anos depois, em 30 de janeiro de 1950, seria tombada como patrimônio nacional.
A velha casa reclamava reformas. “O soalho no andar superior em alguns trechos está cedendo. O seu estado geral não apresenta perigo de ruir mas o descuido do proprietário e a incúria dos inquilinos, todos modestos, fez com que ela ficasse todos os anos de sua existência em completo abandono.” (7) Mas foi central a preocupação em manter o estilo e o plano de obras do SPHAN foi rigoroso: “[t]oda e qualquer peça nova deverá ser igual, em qualidade e aspecto, à peça existente” (8). O arquiteto decorador Georges Simoni foi contratado no Rio de Janeiro para definir o mobiliário, sua disposição e o desenho final das salas de exposição. Criou o balcão e um porta-chapéus para o salão de entrada; desenhou os bancos com pés de madeira, forrados em couro e estofados com molas, que acomodaram os primeiros visitantes. Enquanto isso, Rodrigo Melo Franco se movimentava, gentil mas veemente, na caça ao acervo. Esse espírito se mostra, por exemplo, quando escreve ao diretor do Museu Nacional de Belas Artes, Oswaldo Teixeira:
[…] só desejo a obtenção dos trabalhos do mestre catarinense pertencentes ao MNBA se o senhor concordar em nos atender, sem constrangimento. Nem eu aceitaria a eventualidade de causar prejuízo ao patrimônio desse Museu em proveito de empreendimentos nossos, nem tão pouco a de lhe causar qualquer contrariedade. (9)
Em duas semanas Oswaldo Teixeira apresentava sua lista com 21 contribuições, (10) privilegiando materiais que tinham equivalentes para permanecer no MNBA e que eram também representativos da trajetória do artista. Reuniu 13 estudos em papel, uma aquarela e sete óleos sobre tela. Na lista constavam os óleos A Morta, Cabeça de Velho, Estudo para Batalha dos Guararapes: Felipe Camarão, Estudo para Batalha dos Guararapes: Soldado Holandês, Estudos de Capacete, Estudo de Traje e Barranco (paisagem). Havia ainda a aquarela Estudo de Traje e os desenhos a lápis Estudo de Panejamento, Estudos de Navios (para a Combate Naval do Riachuelo), Estudo de Paisagem, Vista de Ronciglioni, Estudo para Batalha dos Guararapes (croquis), oito estudos de navios para a Combate Naval do Riachuelo, Estudo de Pernas para Primeira Missa no Brasil, Estudo de Mãos, Estudo de Homem Caído Visto de Costas, Estudo de Botas, Estudo de Homem Fugindo, Estudo de Mão Segurando Livro e Grupo de Mulheres Assistindo a uma Solenidade.
Em abril de 1952 essas obras eram embarcadas por avião para Florianópolis, enquanto o navio Itaberá, da Companhia Nacional Costeira, trazia sete caixas contendo os aparelhos de iluminação. Rodrigo Melo Franco não se deu por vencido. Quando enviou Rusins para retirar as obras no MNBA, fez que levasse um ofício, agradecendo e pedindo mais alguma obra em empréstimo temporário, para figurar na inauguração. Pois Oswaldo Teixeira lhe entregou mais uma aquarela, Estudo de Traje.
O próprio Rusins instalou-se durante alguns meses no Lux Hotel, em Florianópolis, para acompanhar a finalização da reforma, a instalação dos equipamentos, a recepção e exposição do acervo. Suas cartas-relatório ao SPHAN são testemunhos da vida cotidiana da “nostálgica” Florianópolis dos anos 50, “lenta” e “tediosa”, conforme a definia. Envolveu-se, também, num périplo atrás de outras obras de Victor Meirelles. Localizou várias, e Rodrigo Melo Franco se empenhou pessoalmente em arrebanhá-las. A paisagem Desterro, pertencente ao Centro Catarinense e em posse de Alexandre Konder, no Rio de Janeiro, e um retrato de homem em crayon sobre papel que estava em Imaruí (SC), pertencente a Pedro Bittencourt, chegaram emprestados ao museu a tempo para a inauguração. O Grupo Escolar Victor Meirelles, de Itajaí (SC), cedeu um retrato do pintor, assinado por A. Pelliciari.
O embaixador Edmundo da Luz Pinto, por sua vez, contribuiu com duas obras, Retrato de José Maria do Vale Jr. com 13 anos de idade e Vista Parcial da Cidade do Desterro em 1849, bem como com a doação do livro em que Victor Meirelles havia estudado artes (Notions pratiques sur l’art de la peinture, enrichies d’exemples d’après les grands maîtres des ècoles italienne, flamande et hollandaise, de John Burnet, edição francesa de 1833). O livro possui curiosas anotações a lápis, feitas nas margens pelo pintor.
Enquanto isso, Rodrigo Melo Franco escrevia também a Pietro Maria Bardi, diretor do MASP, para “solicitar a valiosa colaboração do prezado amigo para, pessoalmente ou por intermédio de algum de seus distintos auxiliares, planejar a instalação adequada do pequeno museu”. Por conseqüência, dois óleos sobre tela do acervo do MASP, Retrato de D. Pedro II e Retrato de D. Tereza Cristina, são emprestados à Casa Victor Meirelles, em setembro de 1952. A devolução dessas telas será motivo de uma extensa negociação e só acontecerá dez anos depois. Eram as duas maiores obras expostas no ato inaugural da casa, alocadas no andar térreo, na entrada das visitas. A esperada inauguração da então denominada Casa Natal de Victor Meirelles ocorreu às 16 horas do dia 15 de novembro de 1952 e foi amplamente divulgada pela imprensa nacional. Rusins fez um discurso breve e o governador Irineu Bornhausen cortou a fita inaugural.
Dez anos passaram até a casa receber nova manutenção. Em 1961 as paredes foram caiadas, algumas tábuas do forro e do soalho, atacadas por cupins, substituídas; as redes elétrica e de água, revisadas. Novas telas vieram, por comodato, do MNBA: Passagem de Humaitá, Cabeça de Menina, Invocação à Nossa Senhora do Carmo e Batalha dos Guararapes (esboço). Mas permaneceram duas rachaduras nas paredes e, cinco anos depois, já ocorria outra intensa troca de cartas e ofícios entre as repartições públicas, sobre a necessidade de uma reforma. Segundo o seu zelador, Irineu dos Santos Lessa, “a casa tem diversos barrotes que estão podres e precisam ser trocados, assim como também a pintura da casa está caindo, o telhado precisa ser todo retelhado por causa das goteiras, quanto à instalação [elétrica] precisa ser mudada, pois já arrumei três curtos”. A Casa de Victor Meirelles estava já sob a guarda do 4º Distrito do SPHAN em São Paulo, cujo diretor era Luis Saia, e sob sua direção ela foi restaurada, com projeto do arquiteto Cyro Illidio Corrêa de Oliveira Lyra. As obras são iniciadas em 1969 e o museu é fechado, para ser reaberto em 22 de novembro de 1974.
Uma importante doação enriqueceu o acervo da casa nesse período. Em 1970, a família do almirante Lucas Boiteaux, cumprindo um acerto feito entre ele e Rodrigo Melo Franco, entrega um conjunto de peças de e sobre Victor Meirelles. Com o gesto, são incorporados ao museu uma aquarela, Vista do Desterro, e seis desenhos: Croquis da Batalha de Guararapes, Grupo de Soldados em Combate, Estudo de Braço de Soldado Caído, Estudo de Braços e Estudo de Mãos. Há também dois retratos de Victor Meirelles: uma aquarela do pintor Pedro Peres, que tinha sido seu aluno na Academia Imperial de Belas Artes, e uma litografia de Valle. A coleção incluía ainda uma monografia sobre o pintor, escrita por José Leão em 1879; uma coleção de recortes de revistas e jornais e seis fotografias, com imagens de pinturas, da casa natal, da árvore usada como modelo em Primeira Missa no Brasil e do próprio Victor Meirelles idoso, com a assinatura do próprio.
Devido à reforma, em 24 de julho de 1970 o acervo do museu, com 27 obras, foi depositado no MASC, que deveria guardar as obras “por um ou dois meses” (11). Elas, porém, ficaram quase três anos, sendo lá expostas por três vezes ao público. Foram devolvidas em 5 de março de 1973 e encaminhadas ao laboratório de restauração do SPHAN no Rio de Janeiro, a cargo do professor Edson Motta, de onde retornam em março de 1974. Nesse mesmo período, a crítica Aracy Amaral viera a Florianópolis a convite da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 1972, e Saia lhe pediu sugestões para a reinstalação da Casa de Victor Meirelles. Ela sugere restaurar as obras – o que em seguida foi feito – e instalar um centro de documentação. Faz também considerações a respeito de sua forma e funcionamento e enfatiza a necessidade de o museu ganhar mais vida e contato com a comunidade:
[…] a casa de Victor Meirelles não deve constituir-se em museu estático, devendo, ao contrário, transformar-se em casa de cultura, que propicie, não apenas o conhecimento do artista cuja obra abriga, porém, numa eventual ampliação de seus objetivos, na base de centro de documentação, transformar-se em local de pesquisa da arte de todo o século 19 no Estado de Santa Catarina. (12)
Algumas dessas sugestões, que de fato estavam já no cerne do projeto de museus lançado nos anos 1930, só vão se concretizar nos anos 1990. Nesse intervalo, as atividades culturais na Casa de Victor Meirelles seguiram um ritmo acanhado e tanto o acervo como a casa ficaram, ano após ano, expostos ao desgaste impiedoso do tempo. Desde a inauguração, o museu ficou sob a vigilância direta de zeladores, que tinham grande entusiasmo pelo trabalho, mas pouca experiência com museologia. Eram pessoas como Irineu dos Santos Lessa, que morou na casa e cuidou dela de 1962 a 1971, fazendo-lhe pequenos consertos; Ecy de Alvarenga Boechat Pereira, funcionária de 1971 a 1982, que com toda a família atendia as visitas à casa, e Arnaldo Heitor Müller, funcionário entre 1982 e 1991. O muito que Ecy Pereira podia fazer era informar por carta que “possivelmente devido à umidade os quadros pertencentes ao acervo desta casa […] vêm demonstrando alterações que consideramos muito graves” (13), embora ela cuidasse pessoalmente de removê-los das paredes todas as noites.
Em 1982, ano do sesquicentenário de Victor Meirelles, a casa foi fechada por alguns meses para pequenos reparos e faixas de cortiça paliativas foram colocadas nas paredes, para que os quadros não encostassem na umidade. Ao mesmo tempo, uma grande exposição comemorativa, com uma seleção de novas obras provenientes do MNBA, foi organizada no MASC. Depois da exposição, essas obras permaneceram na Casa Natal de Victor Meirelles: Cristo Sobre as Ondas, O Naufrágio da Medusa, Mulheres Suliotas, Retrato de Senhora com Traje de 1870, Cabeça de Homem, Casamento da Princesa Isabel, Cabeça de Mulher, Estudo de Traje Feminino, Estudo de Traje Masculino e Degolação de São João Batista.
Ainda em 1982, o Programa Nacional de Museus lançou os fundamentos de uma nova proposta museológica para o país, priorizando os aspectos relativos à segurança, modo de exposição e preservação dos acervos e lançando a semente para uma grande guinada no destino do Museu Victor Meirelles, ocorrida na década seguinte. Em 1986, uma grande exposição, com novas obras de Victor Meirelles vindas do MNBA (oito aquarelas, oito desenhos e treze óleos) veio a Florianópolis, mas ficou instalada, por três semanas, no MASC. E, de 1983 a 1989, o espaço da Casa onde moravam os zeladores se torna a primeira sede estadual do SPHAN/Pró-Memória, que desde então é responsável pelo museu e está sob a direção do arquiteto Dalmo Vieira Filho, atual superintendente da 11ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Santa Catarina (11ª SR/IPHAN/SC).
Em 1991, os múltiplos problemas de degradação, tanto do edifício quanto do acervo do museu, fizeram com que a equipe da 11ª Superintendência, em conjunto com representantes de vários segmentos da sociedade e a Associação dos Amigos do Museu Victor Meirelles (AVM), elaborasse um plano de revitalização, lançando o Projeto Victor Meirelles. Nesse aspecto, foi significativa a criação da AVM, que se tornou mantenedora do museu, numa proposta pioneira em Santa Catarina (14). Nesse mesmo período, Lourdes Rossetto, técnica em Assuntos Culturais da 11ª SR/IPHAN/SC, assumiu a direção da casa e do projeto, iniciando a implantação de uma proposta de transformação conceitual e estrutural ampla, envolvendo a preservação arquitetônica, a preservação do acervo, a expansão da área e a dinamização do museu.
Para deslanchar o projeto, o museu foi fechado à visitação pública em dezembro de 1991 e todo o acervo transferido para a Reserva Técnica do Museu Histórico de Santa Catarina, onde permaneceu e foi eventualmente exposto até a reinauguração, em 18 de agosto de 1994. A reforma arquitetônica foi realizada em diversas etapas, com novo projeto do arquiteto Cyro Lyra, em parceria com o professor Alcídio Mafra de Souza, diretor por dez anos do MNBA. Entre outras intervenções, foram restauradas as esquadrias e o telhado, renovadas as pinturas, refeitas as redes elétrica, telefônica e hidráulica e implantado um sistema de drenagem, eliminando a umidade das paredes. Para dar maior visibilidade e divulgar o museu, um mural foi pintado na empena cega da casa pelo artista plástico Marcos Bento, em agosto de 1993, trazendo uma releitura da obra mais popular de Victor Meirelles, Primeira Missa no Brasil.
Ao mesmo tempo, foi elaborado um programa de manutenção e conservação preventivas do prédio e do acervo. Para tanto, estabeleceu-se um projeto de monitoramento e controle das variáveis ambientais, que mantém constantes, dentro dos padrões internacionais recomendados, a umidade relativa, a temperatura e a ventilação, e instalaram-se filtros que reduzem a contaminação atmosférica nos ambientes. Além disso, foram implantados sistemas de segurança contra roubo e incêndio e um projeto luminotécnico, para controlar a radiação das luzes natural e artificial, projetados pelo engenheiro-eletricista Leonardo Barreto de Oliveira, da 13ª SR/IPHAN/MG.
O museu também foi todo reestruturado em seu funcionamento. As salas do andar superior, antiga residência da família, foram destinadas à exposição das obras do acervo, em rodízios que procuram demonstrar as fases da produção artística do pintor. Já o térreo foi transformado em espaço para exposições temporárias contextualizadas, promovendo a divulgação de artistas novos e consagrados. Entre as diversas mostras realizadas, constam as de nomes como Martinho de Haro, Rodolfo Amoedo, Lasar Segall, Sérgio Ferro, Amílcar de Castro, Osvaldo Goeldi, Paulo Gaiad, Di Cavalcanti, Elke Hering, Lívio Abramo, Max Moura, Hassis, Helô Espada, Tarcísio Mattos, Marília Rodrigues, Lú Pires, Djanira e Fernando Lindote, entre outros dos cenários nacional e internacional. E para aumentar a área de atuação do museu, a Rua Victor Meirelles foi fechada ao trânsito de veículos e transformada em um largo cultural, conforme o Decreto-Lei municipal nº 5.253/93. Ali, muitas atividades artísticas vêm sendo realizadas, como as intervenções Cheios e Vazios, das artistas Flávia Fernandes e Clara Fernandes. Finalmente, o próprio nome do local mudou: em vez de Casa Natal de Victor Meirelles – que fazia pensar na exposição de objetos pessoais do pintor – tornou-se Museu Victor Meirelles (MVM), firmando a sua natureza de museu de arte.
No que se refere à preservação do acervo, além do programa de controle ambiental, que ameniza a deterioração das obras, foi estabelecida uma proposta de tratamento de curto, médio e longo prazos. O trabalho de conservação, que vinha sendo realizado sob a orientação de Aldo Nunes, do Ateliê de Conservação – ATECOR/FCC, e pela conservadora Angela Paiva, do IPHAN, passou a ser feito sistemática e preventivamente pela restauradora Susana Aparecida Cardoso Fernandez. Parte das obras sobre papel, que precisavam de tratamento mais urgente, foram encaminhadas ao Laboratório de Restauração de Papel do MNBA e restauradas.
Desde que o museu reabriu, em 1994, suas atividades não se restringiram mais às mostras de arte e a instituição passou a atuar como centro cultural permanente de educação, desenvolvendo um programa de ação educativo-cultural, com vários projetos. Em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis, foi montado o projeto “Museu vai à Escola/Escola vai ao Museu”, que é coordenado pela arte-educadora Roselene Maria Peixer e atende alunos e professores das redes pública e privada de ensino. Outro projeto, chamado “Vivendo Victor Meirelles”, abrange as escolas da rede estadual de 1º grau e é também pensado como meio de disseminar o conhecimento sobre a obra e a vida do artista. Ele inclui uma exposição itinerante de reproduções do acervo do museu, que visita as escolas, e um material pedagógico. Ao mesmo tempo, o museu atua como centro de formação profissional, de intercâmbio de informações, de estudo e pesquisa dos princípios técnicos e científicos atuais da museologia e da conservação preventiva, de fomento e difusão da vida e obra de Victor Meirelles. E há, ainda, o programa de educação patrimonial, que atende toda a comunidade e os turistas, com visitas monitoradas às exposições.
A agenda cultural do MVM inclui ainda mostras de vídeo, palestras, cursos, seminários, atividades artísticas de diferentes linguagens, como música, teatro, dança, literatura e cinema, além de encontros com artistas. Toda a agenda é elaborada com a participação efetiva da sociedade, através da AVM e com patrocínio de empresas. Com tudo isso, pouco a pouco o museu e os projetos que gravitavam ao seu redor passaram a ser tema de estudo em dissertações e teses de mestrado e doutorado. É preciso destacar que, durante toda a sua história, o museu operou com apoio de pessoal cedido pela Prefeitura Municipal de Florianópolis, que trabalhou em sintonia com a equipe do IPHAN. Um convênio, renovado em 1997 entre a Prefeitura e a 11ª SR/IPHAN/SC, prevê a cessão de funcionários para atuar no museu, e outro convênio com o Programa Voluntários em Ação, cede pessoal voluntário.
Hoje o museu abrange, além da casa natal, um andar de um prédio vizinho, com aproximadamente 178 metros quadrados de área. O imóvel, com características de construção arquitetônica da década de 50, foi cedido por comodato pelo Governo do Estado de Santa Catarina, pela Lei Estadual nº 10.421, assinada em maio de 1997. O espaço foi integrado fisicamente ao museu e destinado à instalação da Reserva Técnica, para a guarda, proteção e segurança do acervo, e da Sala de Conservação e Montagem de Exposições, destinada às funções específicas às obras de arte e para abrigar instrumentação analítica simples, para análises de materiais histórico-arquitetônicos. Ali também se instalou o setor administrativo e a Sala Multiuso, com auditório, espaço para atividades educativas e uma pequena biblioteca. O Programa de Apoio a Museus da Fundação Vitae financiou, em 1998, a aquisição de mobiliário para os espaços da Reserva Técnica e da Sala de Conservação. O projeto dessa área, realizado por Lourdes Rossetto, com a colaboração da arquiteta Maria Isabel Kanan, priorizou todos os aspectos técnicos de funcionalidade, segurança e controle ambiental requeridos para uma reserva técnica, como já havia sido feito em relação às salas de exposição da casa natal. A museóloga Mônica Xexéo, do MNBA, realizou o inventário documental e a catalogação do acervo, assim como a revisão e uniformização dos títulos da obras de Victor Meirelles.
Nesse entretempo, a busca pela expansão do acervo não parou e, em setembro de 2000, se concretizou a aquisição da tela Vista do Desterro, atual Florianópolis (1847), descoberta em 1984 pelo diretor do MNBA, Alcídio Mafra de Souza, na sacristia da Igreja da Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, em Florianópolis. Sem assinatura, a pintura estava bastante deteriorada quando foi levada ao MNBA em 1985, onde sua autoria foi definitivamente reconhecida, conforme parecer de Gilberto Ferrez, do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo também restaurada e tombada. Esteve desde então em exposição no Museu Victor Meirelles, para ser finalmente incorporada ao acervo em troca de serviços de restauração dos retábulos da igreja.
Mesmo a velha casa continuou oferecendo surpresas. Em julho de 2001, durante a recuperação do piso de madeira do andar térreo do museu, evidenciou-se a existência de material arqueológico no local e foram feitas escavações, para recuperar informações acerca dos antigos usos daquele espaço. Foram encontrados vários pisos de chão batido, até o original, com material ósseo de bovinos – a rua, afinal, já se chamou do Açougue – e numerosos artefatos em cerâmica, vidro e metal, além de uma estrutura em alvenaria de pedras argamassadas. O material foi catalogado e acondicionado no escritório da 11ª SR/IPHAN/SC, em Laguna.
Recentemente, o museu ganhou o Projeto de Reabilitação, Ampliação e Revitalização do Largo Victor Meirelles. Desenvolvido pelo arquiteto suíço Peter Widmer, que traz na bagagem uma larga experiência com museus, o projeto propõe maior acessibilidade à casa, acrescentando-lhe novas áreas do edifício adjacente e enfatiza a integração do patrimônio histórico à paisagem urbana contemporânea. A 11ª SR/IPHAN/SC solicitou formalmente ao governo estadual, em julho de 2002, a cessão dos dois andares restantes do prédio, onde já funciona a reserva técnica, o que ampliaria em aproximadamente 350 metros quadrados a área total do museu. Com isso, a casa original poderá ser reservada ao acervo de Victor Meirelles, enquanto o novo espaço abrigaria as exposições temporárias, as oficinas de arte, o auditório, a biblioteca e a videoteca. Estão previstos, também, um elevador para o acesso de portadores de necessidades especiais, integração dos dois edifícios, uma cafeteria e uma loja com produtos com a marca do museu. Trata-se, em síntese, de um projeto focalizado na idéia de ampliar cada vez mais o espaço e o papel do Museu Victor Meirelles no cenário artístico-cultural.
Notas:
1 . Surgiu uma duplicidade no modo de escrever o nome de Victor Meirelles, desde o Acordo Ortográfico de 1943. Pelas regras do acordo, a grafia correta seria “Vítor Meireles” e é assim usada extensamente nos documentos, cartas e ofícios escritos desde aquela data. A 11ª SR/IPHAN, cujo escritório em Florianópolis é responsável pelo Museu Victor Meirelles desde 1983, optou por padronizar a grafia como “Victor Meirelles”, tal como aparece na certidão de nascimento e como o próprio pintor assinava suas obras. <<
2. Por exemplo, o ofício de nº 117, de 24 de março de 1939, de Rodrigo Melo Franco, do SPHAN, ao Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. Este e todos os documentos citados constam do Arquivo da 11ª SR/IPHAN/SC. <<
3. Trecho do aditamento de 11 de abril de 1939 ao ofício nº 117, supracitado. <<
4. Ofício de Rodrigo Melo Franco ao ministro Gustavo Capanema, em 20 de julho de 1945. <<
5. Relatório de Alfredo Teodoro Rusins a Rodrigo Melo Franco, de 11 de julho de 1945. <<
6. Conta Rusins: “O homem é um vencido pela sorte adversa. A sua relojoaria desaparecera num incêndio sofrendo prejuízo total. Tentara mais tarde suicidar-se mas a bala não o atingiu mortalmente, encontrando-se ainda localizada no crânio, razão pela qual apresenta contração facial defeituosa e dificuldade em falar”. Idem. <<
7. Relatório de Alfredo T. Rusins de 11 de julho de 1945. O engenheiro Raul Bastos fez o laudo inicial para a reforma em 29 de novembro de 1947 e constatou: “O prédio em questão acha-se em péssimo estado de conservação, aproveitando-se apenas as paredes externas e algumas internas”. <<
8. Plano de Obras de Conservação e Adaptação para Museu, assinado por Paulo P. Barreto, da seção de Obras da SPHAN, em 5 de agosto de 1948. <<
9. Carta de Rodrigo Melo Franco a Oswaldo Teixeira, Rio de Janeiro, 4 de abril de 1951. <<
10. Ofício de Oswaldo Teixeira, diretor do MNBA, ao Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 17 de abril de 1951. A autorização do ministério foi dada em 28 de abril de 1951. <<
11. Carta de Aldo João Nunes, diretor do MASC, a Luis Saia, em 19 de setembro de 1972. Aldo Nunes escreve várias vezes a Saia solicitando que as peças sejam relocadas: “[N]ão nos é possível protelar mais a devolução das obras do citado artista”, diz Nunes. “O depósito de nosso Museu, além de não comportar mais obras, em virtude das aquisições feitas durante os últimos anos, não possui ambiente adequado.” <<
12. De Aracy Amaral, no “Relatório do parecer para funcionamento e montagem da Casa de Victor Meirelles”, 23 de junho de 1972. <<
13. Em carta a Luis Saia, em setembro de 1978. <<
14. A Associação Victor Meirelles, criada em 1991, presidida durante dez anos por Armando Luiz Gonzaga e, atualmente por Ruth Correa, é uma sociedade civil de fins culturais e não-lucrativos, formada por representantes da sociedade civil e de entidades públicas e privadas. Seus objetivos básicos, que constam nos artigos 1 e 2 do seu estatuto, são: 1) Zelar pela preservação do prédio do Museu Victor Meirelles; 2) Promover e apoiar atividades artístico-culturais; 3) Promover o intercâmbio artístico-cultural em níveis nacional e internacional; 4) Angariar subvenções ou doações destinados ao Museu Victor Meirelles. A entidade não possui ingerência técnica nas atividades museológicas, mas participa nas decisões; é mediadora nas relações do museu com os setores público e privado e personifica o papel da sociedade na preservação e estímulo da cultura. <<