INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

Breves Apontamentos Sobre Processos da Gravura na Arte Contemporânea por Diego Rayck

Dentre as formas consagradas nos modelos artísticos acadêmicos, a gravura e suas derivações são hoje as menos conhecidas do público. Apesar da enorme familiaridade com os impressos, da sofisticação técnica da indústria gráfica e da exposição excessiva à informação visual, atualmente, grande parte do público desconhece não só os antecedentes da indústria gráfica e seu caráter artístico, mas, o que é mais importante, os princípios que possibilitam estas produções. Isto, talvez, devido a uma operação de alienação pela intervenção industrial nesta atividade, o que não ocorreu em outras categorias artísticas menos envolvidas com funções utilitárias. Deixando de lado especulações sobre as causas desta situação, é importante pensar como, de forma aparentemente contraditória a esta condição geral, a gravura solicita uma atenção especial sobre sua fatura.

O olhar para uma gravura desperta o interesse pelos procedimentos empregados na sua realização, fazendo com que o espectador procure descobrir com que técnica a gravura foi feita, pensando no ateliê, tentando reconstruir mentalmente uma matriz ou imaginando o percurso do artista ao longo dos procedimentos que se sucederam. Esta especulação investigativa não se restringe a uma simples curiosidade pelos aspectos mais instrumentais do trabalho, mas, como observa o pesquisador francês Georges Didi-Huberman, é provocada pelas dimensões processuais e formais que a impressão solicita ao olhar.

De maneira mais freqüente e acentuada que a maioria dos procedimentos empregados na pintura e no desenho, por exemplo, que ocorrem de forma mais imediata, os procedimentos da gravura envolvem séries encadeadas de transferências entre ações, materiais e intenções.

A complexidade das técnicas tradicionais como a gravura em metal, a xilogravura e a litografia é evidente ao se observar o funcionamento de um ateliê de gravura. A presença fugidia e incerta da imagem incompleta ou invertida ao longo do processo, as longas seqüências de procedimentos, ferramentas e químicos empregados, facilmente distraem a atenção dos princípios que norteiam estas condições de trabalho.

A gravação de uma matriz, o seu contato e passagem para outro suporte, o potencial de reprodutibilidade, as inversões e espelhamentos são operações fundamentais para pensar a gravura. Além disso, estas operações envolvem um conjunto de conceitos presentes na produção contemporânea cuja reflexão possibilita ampliar a percepção e a prática da gravura, extrapolando sua definição enquanto categoria. Neste sentido, é relevante localizar alguns dos princípios inerentes à elaboração de toda gravura.

O primeiro princípio é a marca. A marca envolve o registro de uma experiência em um corpo, a inscrição de um gesto. Quando o artista grava uma matriz, transformando-a pela ação de ferramentas ou químicos, elabora as marcas que visam, geralmente, uma imagem impressa. Assim como nas demais categorias da tradição artística moderna, as práticas da gravura se preocupam progressivamente em ocultar menos as suas circunstâncias de inscrição, revelando na obra apresentada o seu próprio processo. No contexto contemporâneo, a gravura passa a ampliar as possibilidades de uso dos materiais e técnicas, questionando paradigmas formais e de representação.

O segundo princípio é a transferência, que diz respeito a toda aderência física, moldagem e migração de uma marca. Na gravura, a transferência não ocorre apenas no momento da impressão, esta passagem da marca gravada da matriz para o suporte, mas também pode estar presente em vários processos, gerando duplos, simulando resultados, sobrepondo ações. É importante notar que a transferência encerra uma importante operação de inversão: do positivo ao negativo, do negativo ao positivo, o que pode ser bem observado nos processos de moldagem.

O terceiro princípio é a reprodução, referente a tudo que se gera pela repetição, produzido de forma muito semelhante e em grande quantidade. Este princípio caracterizou a gravura por muitos séculos, atrelando-a a necessidades de produção e divulgação ideológica. Mesmo atualmente, com métodos de reprodução fotomecânicos, que desvincularam a gravura de ateliê de demandas utilitárias, a reprodutibilidade continua presente na produção de gravura por sua relação sinérgica com os outros dois princípios.

É importante observar que estes princípios não são exclusivos da gravura, apesar de lhe serem fundamentais. Na medida em que podem ser articulados a outros conceitos em diversas formas de produção artística, estes princípios permitem estabelecer interessantes relações de proximidade entre trabalhos evidentemente vinculados ao meio gráfico e outros nem tanto. Melhor ainda, permitem que os artistas desenvolvam propostas que, apesar da impossibilidade de serem consideradas como gravura há algumas décadas atrás, são extremamente pertinentes para as reflexões contemporâneas sobre a gravura, mostrando a fragilidade e a limitação de abordagens pautadas prioritariamente em categorizações.

Nos últimos cinqüenta anos, percebe-se um processo de progressivo questionamento da arte sobre seus aspectos institucionais, formais e conceituais. As definições e teorias mais conservadoras e formalistas tornaram-se insuficientes diante das reflexões e investidas da produção artística contemporânea. Hoje, em decorrência de uma série de experimentações e rupturas realizadas, especialmente, a partir dos anos 60, cada projeto poético explora materiais, procedimentos e conceitos sem a imposição de formas rígidas ou hierarquias pré-definidas. Isto abre a possibilidade de um olhar diferenciado para a produção de arte de outros períodos históricos, permitindo abordagens mais generosas e críticas, não apenas condicionadas a um programa retrospectivo ou evolutivo.
Assim, atualmente, uma exposição de gravuras possui esta possibilidade de lançar olhares que ressignifiquem o passado, papel especialmente importante se tratando de um meio que esteve, tantas vezes, atrelado a discursos puristas e conservadores.

Essas gravuras presentes neste volume são um recorte da coleção do museu formada em grande parte por obras que integraram as exposições temporárias realizadas pela instituição nos últimos anos. Mais do que pensar em um panorama das artes gráficas neste contexto, estes trabalhos podem ser compreendidos como integrantes de um processo cujo sentido extrapola o termo gravura e encontra relevância para a reflexão artística de forma ampla, porém não superficial.

A dimensão processual da obra de arte merece especial atenção, ao conferir um sentido dinâmico e complexo para a produção artística. Vale sinalizar, neste sentido, o depoimento do artista Hélio Fervenza, que participa desta mostra. Na ocasião da exposição Primeiras apresentações e pontuações recentes, realizada em 2005, Fervenza afirmou que o convite para expor um conjunto inédito de gravuras, quinze anos depois de realizadas, o levou a pensar na importância destes trabalhos em sua pesquisa recente. Nesta mostra, o artista evidenciou seu próprio percurso artístico, ao propor a coexistência de intervenções espaciais em vinil adesivo e xilogravuras em papel arroz. Com a exposição, Fervenza pôde localizar em suas gravuras o surgimento das “noções de vazio e cheio, de recorte, de intervalo, de apresentação, de inter-relação, de indeterminação…” tão caras a sua produção atual. Além das especificidades do suporte, procedimentos e soluções formais trabalhadas nas xilogravuras, os conceitos articulados neste trabalho, desdobraram-se em outros meios e suportes, não de forma abrupta, mas demonstrando a pertinência de questões do meio gráfico.

Outro exemplo da importância de um olhar processual para a gravura nesta mostra, pode ser apontado nos trabalhos de Ana Elisa Dias Baptista. Uma visão que priorize excessivamente o preciosismo técnico destas obras negligencia conceitos importantes do trabalho, como a observação e o desenho, a relação com a morte, o cotidiano, a afetividade, a presença do animal. Certamente a gravura confere especificidades valiosas à artista em sua pesquisa, mas não deve ser pensada como uma via unívoca e exclusiva de acesso ao trabalho. A gravura não encerra em seu processo e resultado a amplitude da experiência da artista, em suas saídas a campo para desenhar uma carcaça ou, no congelamento de um animal morto para depois, com mais tempo, dedicar-lhe os procedimentos de observação e registro gráfico.

Os procedimentos da gravura refletem e concentram esta experiência sob o trabalho da artista, mas não a traduzem totalmente. Tudo o que escapa, vaza, do que podemos chamar de uma gravura de ateliê, continua inundando o universo da artista, impregnando outros processos, alimentando os movimentos de uma trajetória poética.

Analisar toda a diversidade de pesquisas poéticas dos artistas que participam da exposição, com suas especificidades e potencialidades, simplesmente dentro de uma leitura da gravura como categoria se revela insuficiente. Uma análise da gravura demanda uma pesquisa sobre a forma como cada artista explora a prática da gravura e estabelece relações com os conceitos e questões de seu processo.

Mesmo diante da produção de artistas que trabalham com uma concepção mais conservadora da gravura, uma abordagem igualmente conservadora, não parece capaz de acessar toda a dimensão da obra. Ainda que a exposição apresente gravuras desenvolvidas de forma mais tradicional, vale ressaltar que a pesquisa destes artistas não explora exclusivamente este meio. Existe uma intensa ressonância entre a pesquisa gráfica e a pictórica de Yara Guasque e Turi Simeti, e mesmo, entre desenho e gravura, na pesquisa de Jandira Lorenz, só para citar alguns exemplos.

Investigando os conceitos mais importantes de cada trabalho e a dimensão processual de uma trajetória poética, podemos ampliar nosso entendimento de gravura, analisando a forma como seus princípios se manifestam em uma variedade de outros meios e linguagens de forma igualmente determinante. Esta abordagem contribui para reformular as questões da gravura a partir de sua tradição e de seus procedimentos, mas também levando em consideração o que é inerente a cada trabalho e em relação com as reflexões de outros procedimentos artísticos, sem se restringir às limitações de distinções categóricas.

Diego Rayck