Estados de imagem: livros de Waltercio Caldas
Nesta exposição realizada no museu Victor Meirelles, uma vez morada do importante artista brasileiro do século XIX, abrem-se três livros de Waltercio Caldas com inspiração na pintura. Matisse com talco (1978), Velázquez (1996) e O livro para INGRES (1998) trazem em comum imagens da arte e a memória de pintura que elas evocam como matéria poética. Difícil esquivar-se da vontade de relacionar a visualidade da arte de Waltercio à arte que ela sugere. Para essas obras em exposição é preciso pensar nos gestos significativos – colocar o talco sobre a reprodução de Matisse, retirar os personagens da pintura de Velázquez e marcar uma página em branco ladeada pelos postais de Ingres – que silenciam as imagens das pinturas através da obliteração de sua eloqüência discursiva. Na relação entre imagens e coisas, entre arte e história da arte, constroem-se esses objetos especiais, livros para um espectador atento.
Na escolha do formato de livros, pelo artista, agrega-se um elemento de ambigüidade na discussão da arte. Pensemos inicialmente em nosso museu imaginário de obras de arte construído em maior medida pelos livros do que pela experiência direta com as obras, relembrando aqui o projeto de André Malraux. Como afirmou Harold Rosenberg, em “A arte dos livros de arte”, o “museu” total cresce cada vez mais, ninguém consegue dar conta de suas dimensões globais e desta forma a única solução é fundi-las num material que permita seu acesso simultâneo em todos os lugares. Também sabemos, com efeito, que muito da produção artística, desde os anos 1960, passa pela superfície impressa. Assim, imersos na velocidade com que tudo se reproduz (a arte e todas as coisas do mundo) em imagens nos meios eletrônicos, o livro adquire a particularidade de um objeto feito com certo papel, com certa qualidade de reprodução de imagem, que se pode carregar para qualquer ambiente e que se folheia em uma temporalidade mais lenta.
A produção de Waltercio Caldas, ao considerar o lugar da arte na contemporaneidade, realiza uma reflexão sobre a ocupação e a existência do trabalho de arte dada no próprio trabalho; subjacente, há um pensamento sobre o museu, o evento de exposição, o catálogo, o livro, o design, a publicidade, a história, a cidade e o espectador. A arte aparece como matéria de trabalho ainda que isto ocorra, não poucas vezes, apenas com a nominação de artistas – Giotto, Giacometti, Fra Angelico, Rodin, Mondrian, entre outros. Em Matisse com talco, Velázquez e O livro para INGRES a arte aparece nas imagens ou na imaginação das obras dos artistas mencionados nos títulos.
Uma névoa de talco cobre a reprodução de um Matisse no livro. A apreensão desse novo objeto parece estar permeada pela memória de um constante adensamento de uma imagem que simultaneamente desaparece. Camada sobre camada, o livro vai deixando de ser apenas aquele livro original. Torna-se esse outro objeto cuja superfície exala o constante ato de espacialização de uma página impressa, precisamente, com uma pintura de Matisse: o talco como que se dissolve no ar em partículas de branco, inventando uma materialidade semelhante a da luz-cor de uma tela de Matisse.
Num livro normal, aparecem todos os itens que garantem a realização correta de um livro de arte: capa, contracapa, título, figuras, textos explicativos. Na capa, aparecem imagens de livros abertos e um título, Velázquez. Conforme o folheamos ficamos de sobreaviso: de cada obra supostamente de autoria do artista espanhol foram retiradas todas as figuras humanas. Porém, cada obra de Velázquez constrói-se com as figuras humanas que ali se eternizaram, o espaço, paisagem ou ambiente, apenas se insinua entre as figuras que o habitam. No Velázquez de Waltercio, todas as imagens que aparecem no livro são como que imagens de um original que não existe. Procuramos naqueles espaços vazios e nas páginas borradas rastros dos originais perdidos; os quais, em sua maioria, conhecemos apenas por outros livros.
O livro para INGRES abre-se no vazio da página. Ao divagarmos sobre o espaço exíguo dos pequenos postais, nos deparamos com as superfícies da pintura de Ingres – texturas refazem os tecidos e a pele, a luz modulada evidencia o corpo da modelo desenhada com a linha sinuosa de um classicismo levemente torcido. Nos perguntamos o que resta daquele corpo na reprodução da pintura. Também indagamos do corpo da arte e de sua materialidade diante da página de metal, apenas estrutura de página, com formas geométricas que repetem a luz do ambiente. Onde está o corpo da arte, onde o corpo da imagem?
Nossos olhos atravessam as vitrines e destas passamos ao museu como um todo. É fato significativo que esta exposição de Waltercio Caldas aconteça no museu dedicado à obra do pintor Victor Meirelles. Este museu, como organizado hoje, pretende oferecer uma compreensão ampla de sua obra, sob pontos de vista histórico-contextuais, poéticos e em diálogos com a produção moderna e contemporânea. Museu deve ser um espaço aberto à pesquisa, dúvida e descobertas. Absorvidos pela presença dos trabalhos de Waltercio Caldas, nesta oportunidade única, nos transformamos em leitores inquietos também deste museu-livro de Victor Meirelles.
Daniela Vicentini e Paulo Reis