o lixo, o belo e o nada
Segundo o artista norte-americano Allan Kaprow, quando discorria sobre o legado de Jackson Pollock, dizia que os artistas “descobrirão nas coisas ordinárias o sentido de ser ordinário. Não tentarão torná-las extraordinárias, mas apenas exprimir o seu significado real. No entando a partir do nada, vão inventar o extraordinário e então talvez também inventem o nada.”
Este comentário feito nos anos sessenta, passados quase cinquenta anos de sua formulação, cabe na atualidade para pensarmos os procedimentos poéticos de artistas como Renata de Andrade.
Inicialmente uma pintora – ou melhor, uma pintora de retratos e naturezas mortas – radicou-se há quase vinte anos na Europa, aonde vem realizando proposições artísticas que priorizam o que consideraríamos banal e sem sentido. Nos caminhos que percorre pela cidade enxerga poesia e beleza não convencional no lixo que encontra, e depois o retrabalha ou apenas o recontextualiza.
Há uma dose de humor neste procedimento artístico. Na verdade, seu discurso se refere ao fato de que tudo em torno pode ser assimilado como arte, até mesmo o nada ou o lixo. É só uma questão, como ela mesmo diz de “abrir o olhar, a maneira de ver as coisas”.
Seus primeiros trabalhos em quadrinhos do início da década de 80, surpreendiam pela qualidade dos desenhos e textos, realizados com humor e ironia diante de situações recolhidas no cotidiano e que tinham cidades cinzentas como fundo.
Nesta época a artista começou uma longa viagem ao deixar São Paulo para trás e se estabilizar alguns anos depois em Amsterdam, onde frequentou a Academia de Arte Rietveld. Dali desenvolveu uma carreira descompromissada com o mercado e circuito das artes plásticas. Situação só permitida em um país que encara a cultura e seus artistas como um patrimônio, permitindo-lhes a possibilidade de criar livremente, sem terem que degladiar-se pela sobrevivência, permitindo ao artista a possibilidade de experimentar e criar com mais liberdade material.
É o que faz Renata de Andrade. Dona de um senso crítico incomum sobre a prática artística na contemporainedade e com uma certa dose de doçura e simplicidade, a artista aborda com inteligência questões pessoais, sociais, de ecologia e as consequências da economia globalizada. No entanto sua preocupação tem mais a ver com as questões pertinenentes à ecologia e preservação, sensu lato, do que com questões que possam ser suscitadas diretamente às políticas sociais e ambientais, propriamente ditas.
Não são portanto “exclusivamente “ artísticos os seus trabalhos. Nem o lixo o tema principal. Mas sim, o que é descartado, abandonado, esquecido, perdido, e a percepção de seus formatos e suas cores essenciais, encontradas no lixo das grandes cidades, matéria e composição artística de seu trabalho plástico.
Materiais que não se desfazem e que não são orgânicos, tornam-se os elementos constitutivos. O trabalho pede interação com as comunidades coletoras de lixo (no caso do Brasil estas organizações são responsáveis pelo avanço na reciclagem), e é aqui que poderíamos entender sua contribuição social ao chamar a atenção para o trabalho, muitas vezes desprezados, destas pessoas anônimas que perambulam pelas ruas puxando carroças precárias. Sem terem reconhecida a sua contribuição social, são vistas pelas janelas como estorvos, como “uns nadas”.
São situações incômodas para as sociedades atuais estes problemas trazidos pelo lixo que não se decompõe na natureza e o aquecimento global causado pelo consumo desenfreado de matéria industrializada. No entanto, sem fazer disso alarde ou uma bandeira para o ativismo e, com sutileza, a artista faz suas críticas ao reutilizar o que simplesmente se descarta. Reutiliza o material que não é degrádavel, dando-lhe uma nova “oportunidade”. Com ele, constroí um museu aberto que se desdobra em suas instalações apresentadas em cidades como Ribeirão Preto, Fortaleza e Rotterdan, ao longo destes últimos anos.
São gestos mínimos, ações pequenas e movimentos curtos, agora vistos como manifestação criativa e plástica. A rua com seus elementos constitutivos passa a ser o suporte ideal para as criações neste limiar de século para artistas de determinado segmento, que misturam sem hierarquia arte e vida. Elementos que passam a ser matéria artística essencial dessa época ao tornarem-se fonte inesgotável de referências plásticas e estéticas.
Vivemos um momento no meio das artes plásticas em que tudo pode ser visto como uma forma de manifestação artística. A arte contemporânea se dilui no cotidiano de artistas e público, mesmo que a contragosto de um determinado segmento purista de críticos e artistas que pregam a arte pela arte.
A artista, no bom sentido da palavra, sempre esteve envolvida com a criação que pode se dar na música experimental, na fotografia ou nas artes plásticas.
Depois dos quadrinhos, Renata vai se dedicar à pintura como um suporte convencional para suas reflexões e lembranças familiares. Na sequência começa a acrescentar a esta pintura elementos encontrados (objects trouvés) nos caminhos que percorria no seu dia a dia. Delicadamente ela começava a coletar materiais que lhe chamavam a atenção e que tinham sido descartados, começando um processo que mais se assemelha ao de um colecionador apaixonado.
Mas são as leis pictoriais como composição, cor, linha, forma e estrutura as diretrizes do trabalho, ao utilizar de forma pictorial os objetos de cores fortes e formas definidas em suas instalações.
E para ter uma experiência total de cor e forma puras, a artista faz uma operação de limpeza para retirar tudo que não lhe interessa, como rótulos e etiquetas. Consegue desta maneira dar autonomia às cores e formas do objeto, em uma organização que remete às pinturas de Morandi. Uma clara referência para a artista as naturezas mortas deste mestre, em que os objetos quase que se desfazem no conjunto de tons apastelados.
Um gesto artístico, portanto, que não se resume às questões puramente ideológicas que carregam certa utopia, um certo romantismo ao trabalhar com o que é descartado pela sociedade contemporânea, mas também se apresentam como propostas plásticas de rara beleza onde predominam no primeiro plano a cor e a forma. Em segundo plano entram questões espaciais ao reagrupar ou reordenar cor e forma no espaço.
São objetos de todos os tipos e materiais utilizados como sua arte. Ao serem resgatados, são ordenados como em uma catalogação de objetos a serem museificados. Neste gesto museológico a artista parece querer tombá-los como registros da humanidade ao eternizá-los em suas telas, esculturas e instalações. E podem se transformar em inspiração pictórica simples tampinhas de plástico de variadas cores, coletadas no caminho que percorria do hotel em que se hospedava até o local de sua exposição durante o 29º SARP de 2004, em Ribeirão Preto. Objetos que depois de observados se transformaram em uma pintura mural “pop-abstrato” de cores vibrantes e formas agigantadas.
Para chegar então aos equipamentos de informática. São dezenas de scanners empilhados dramaticamente e apresentados como uma escultura pálida, carregada de significados da vida contemporânea. Restos melancólicos de nossa propalada revolução digital, agrupados em uma montanha desses equipamentos eletrônicos que foram museificados como uma escultura/instalação, ao entrarem para a coleção do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar, em 2006, em Fortaleza, Ceará.
Em maio daquele ano, a artista se apresentou dentro do programa “Artista Invasor”, em que apresentou a “escultura” e uma instalação em que misturava o lixo ordenado com o grafite, criando uma sala em que predominava a cor nos muros, e dos sacos e garrafas plásticas. Estas instalações, como já foi dado a entender neste texto, podem ser vistas como uma forma de pintar tridimensionalmente no espaço. É como se a artista quisesse nos chamar pela primeira vez a atenção para o mundo que sempre tivemos a nossa volta, mas que estamos sempre a ignorar. Ela vai buscar o belo que não mais percebemos com os nossos olhares apressados nas formas e cores que estão à nossa disposição em todo lugar.
A artista “molda” intuitivamente sacos de lixo, ou faz de uma simples tampa de garrafa pet motivos para suas pinturas, tirando desses objetos a sua essência diluida na vida cotidiana. Ao encontrar situações reais onde o lixo já esta previamente organizado (amontoado aleatoriamente nas ruas, sem a intenção de fazer uma instalação ou escultura), a artista registra fotograficamente e se apropria da imagem gerada. A fotografia entra aqui como meio para o registro de instalações alheias realizadas espontaneamente nas ruas das cidades. Uma forma de land-art às avessas, em que seu olhar construtor ou maneira de enxergar o mundo transforma-se em sua própria obra. Trata-se de uma especialização ou apuramento da nossa faculdade de enxergar o não perceptível, que remete ao procedimento poético visto em certa medida nas obras de artistas como o carioca Marcos Chaves, o belga Francis Alÿs e o mexicano Gabriel Orozco.
O que mais impressiona no trabalho de Renata de Andrade é o carácter escultórico, de uma simplicidade impressionante, em que consegue com o simples gesto de rearranjar ou encher sacos de lixo com lixo, acomodá-los de forma a lhes dar um novo sentido estético que evidencia cores e formas sofisticados contidos ali aleatorioamente.
É uma artista que sabe integrar também poeticamente a grafitagem de uma forma harmônica na sua obra. O que a atrai no graffiti é a sua possibilidade anárquica como forma política de arte e domínio de espaço público. Ao juntar esta linguagem com “lixo”, apresenta-se com desenvoltura na sala de exposição de um museu ou de uma galeria, da mesma forma em que vai para as ruas com estas instalações.
Renata não se apossa das coisas que encontra, simplesmente as recolhe e as reorganiza, lhes dando novo sentido existencial. É no lixo reordenado onde a artista cria critérios seletivos quanto à cor e à forma, em busca do belo. Mas o trabalho é o que se vê, e nada mais.
Ricardo Resende
São Paulo