INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

Reflexões resistentes, porém, maleáveis e permeáveis por Sandra Favero

Gravar é surpreender com marcas o suporte que você escolhe para ser a matriz da sua idéia. É invadir, enérgica ou suavemente, o espaço da matéria, forçando-o a aceitar o seu suposto domínio sobre as ações que seguirão. Mas o controle é limitado pelas circunstâncias que passam a dividir com o artista a feitura da imagem. O artista não detém o poder exclusivo, o tempo pode ou não ser seu aliado, como também a escolha instrumental feita.

Entrar em uma oficina de gravura é deixar o tempo vivido, se colocando ao dispor de outro compasso: da espera; da repetição do fazer; das surpresas desejadas e indesejadas; das sutilezas do meio.

Cada artista que experimenta o processo de gravar reage de forma diferenciada, singular. Num diálogo intenso consigo mesmo, com seus pensamentos, com sua vontade de extrair da matéria exatamente aquilo que busca, sem ultrajá-la, transforma impulsos, instiga curiosidades, entrega-se aos domínios do acaso quando percebe que a matriz muitas vezes tem vontade própria, protesta.

O envolvimento com a gravura é transformador. Se desde sempre o homem procura deixar registrada a sua presença fixando marcas em lugares, é na gravura que suas marcas traduzidas em imagem se emancipam. O material gravado ou a possibilidade de transferência para outro suporte, ganham a liberdade de escolha enquanto linguagem autônoma, caracterizada pela possibilidade da multiplicação, com identidade própria sustentada historicamente pela evolução de sua trajetória.

A história da gravura tem como peculiaridade o fato de estar fortemente atrelada à comunicação e divulgação cultural, seguindo por caminhos paralelos. Pela história da imprensa e a evolução dos processos gráficos, ligando-se ao mundo da técnica e da industrialização, consequentemente, da produção seriada. E, pela forte e persistente presença como linguagem possível de criação artística.

Convencionalmente a gravura é o resultado formal de um processo que começa mentalmente no momento da ‘idéia’, seguindo para a escolha do suporte sobre o qual o artista passa a dialogar, num contínuo procedimento de pensar e gravar, gravar e pensar. Ao final da gravação, quando o artista tira a cópia que define como pronta para impressão, o suporte utilizado: madeira, metal, pedra, tecido de nylon ou poliéster, ou outro suporte plano qualquer, recebe o nome de matriz. Essa matriz completa o processo quando passa para os procedimentos de impressão, resultando nas cópias que juntas formam a tiragem, ou seja, o total de cópias feitas da matriz, numa mesma cor e sobre um mesmo papel ou outro material que resista ao atrito ou pressão. O conjunto de todas as cópias, depois de devidamente numeradas e assinadas pelo artista, recebe o nome de obra gráfica.

No meio artístico, os procedimentos tomados para uma gravura, muitas vezes, passam por avaliações tendenciosas que valorizam por demais a execução técnica, deixando de lado os valores artísticos da gravura. Mas toda a problemática da execução técnica está intensamente ligada à linguagem visual e à expressão que se fundem pela formalização do pensamento do artista, seus conteúdos e suas reflexões sobre a própria vida e o mundo do qual faz parte.

Ao mergulhar no processo, o artista passa a reconhecer mais profundamente os caminhos prováveis dentro de uma oficina de gravura e se organiza de uma maneira aberta para perceber que o diálogo com a matéria é imprescindível para identificar como expressar o seu pensamento. Luigi Pareyson escreve em seu livro Estética – teoria da formatividade: “Não se pode pensar que uma intenção formativa possa escolher para si indiferentemente matérias diversas, como se ela não se definisse apenas no ato em que adota a própria matéria”.

O modo como o artista organiza as qualidades sensíveis no processo de elaboração da sua idéia implica, então, na acertada articulação entre procedimentos técnicos, sintaxe visual, linguagem específica do suporte escolhido. Essa articulação é traduzida em linguagem poética na sua gravura.

O artista da contemporaneidade desaloja e desestabiliza as categorias e as hierarquias convencionalmente reconhecidas: pintura, escultura, desenho, cerâmica, gravura etc. Eleva ao primeiro plano a idéia, salienta muitas vezes a transgressão dos limites da matéria, se apropria da possibilidade da ‘simbiose’ entre as linguagens, coloca-se disposto a encontrar nos meios e avanços da proliferação tecnológica, oportunidades para abordagens e procedimentos significativamente instigantes, inovadores.

Entretanto, mesmo com toda a liberdade encontrada na Arte, permanecem e sempre surgem novos artistas que buscam a especificidade da linguagem, seja da pintura, escultura, desenho, cerâmica. Especificamente na gravura, nem pelas questões relacionadas às técnicas ou as possibilidades de multiplicação da imagem, mas, porque para esses artistas o meio é a sua forma de expressão. São os “gravadores essenciais”, assim denominados por Olívio Tavares de Araújo. Entre eles, aqueles que evidenciam em seus trabalhos um diálogo intensamente amoroso com a matéria, num tempo que é só deles, entregando-se e estabelecendo um elo de continuidade com uma longa tradição que ensina como manipulá-la e transformá-la continuadamente em novas possibilidades poéticas de ordem gráfica.

Sandra Favero