Ana Luiza Andrade
(Universidade Federal de Santa Catarina)
(Os insetos parecem criação de algum gênio ocioso e imaginativo. Corpos esféricos, em forma de gravetos, de sementes, de moedas, a cabeça alongada como faca, ápteros, de asas estendidas ou incrustadas no dorso, armados de pinças, de brocas, de aguilhões, de mandíbulas, olhos facetados, antenas, as pernas curtas, ou longas, ou incontáveis, negros, coloridos, mudos, vozes da Noite, cantores de Verão, úteis, predadores, habitantes das águas, da superfícies, das profundezas, do ar, eles, mais do que nenhuma espécie viva, sondam as possibilidades do mundo).
trecho de Noivado de Osman Lins, 1966.
Muitas vezes o catarinense não conhece suas próprias riquezas culturais, como é o caso do Museu de Entomologia Fritz Plaumann em Nova Teutônia, Seara, no oeste catarinense, que hoje abriga coleções de insetos invejadas por entomólogos de muitas outras partes do mundo.
Não é difícil acessar o museu por internet e ouvir o rádio-documentário “O senhor das borboletas” acerca das dificuldades do entomólogo, meteorologista, fotógrafo e escritor Fritz Plaumann depois de chegar ao Brasil para conseguir desenvolver suas pesquisas científicas e proteger uma coleção várias vezes ameaçada, tanto por trabalhar em condições rudimentares extremas, até sem energia elétrica, em 1925, quando teve início a coleção, como por ter tido problemas com os órgãos oficiais governamentais, durante a segunda guerra, quando o proibiram de enviar insetos para fora do país. Como fica claro na gravação do documentário, o caso do Professor Fritz era “de ciência e não de polícia”. No entanto, foram tantos os dissabores, que ele decide, em 1982, vender a coleção, por não saber que a prefeitura teria interesse nela, já que a comunidade nunca havia se manifestado a seu favor. Para abreviar, esta bela e bem organizada coleção se mantém em Nova Teutônia, para quem quiser conhecê-la. A propósito dela, Walter Benjamin já observava a perda do valor utilitário de uma coleção, imbuídos os objetos de significado e qualidade para além deles mesmos.
A menção do Museu Fritz Plaumann, vem, no entanto, a respeito da artista Ana Elisa Dias Baptista, cuja obra de gravurista capta o microscópico mundo dos insetos inconforme à exclusiva lente entomologista, mas, inusitadamente, calcando-os, emoldurando-os e expondo-os através de ângulos pouco comuns e de modos inesperados. Os insetos de Ana Elisa adquirem, através das suas lentes, aspectos surpreendentes tanto em relação a uma visão coletiva, quanto a uma visão individual, na primeira quando eles trazem de volta ao observador aspectos da arte de colecionar, quando se percebe os alfinetes que os fixa na tela, e na segunda, quando nos atraem, desenhos isolados um do outro, pela sua forma, cor, tamanho, mobilidade.
Muito resumidamente, Ana Elisa Dias Baptista, residente em São Paulo e formada pela Faculdade de Artes Plásticas (FAAP/SP,1984/87) recebeu vários prêmios, dentre eles, o primeiro prêmio no 1º. Salão de Artes do Instituto de Engenharia/SP (1987) e o prêmio de aquisição na 1ª. Bienal de Gravura da Cidade de Santo André (2001) tendo participado de vários salões e exposições coletivas e individuais. Além disso, tem obras nos acervos do Museu de Arte Contemporânea de Campinas (São Paulo) no Museu de Arte Contemporânea de Americana (São Paulo), e no SESC de São Paulo.
Seu trabalho dialoga muito de perto com os colecionadores de insetos do século passado, tais como Fritz Plaumann. Mais que isso, seu trabalho sobre os insetos vai levá-la, inclusive aos primórdios de coleções como a dele, retrocedendo ao tempo das naturezas-mortas quinhentistas. Leon Klossowski já havia assinalado que “as paisagens de Ana Elisa riscam com torres de transmissão um horizonte remoto” ligando-as às naturezas mortas na encenação de um teatro da natureza. De fato, Ana Elisa Dias Baptista nos leva, historicamente, de volta às descobertas científicas em sua primeira fixação pictórica, aos livros que ilustravam, já na Idade Média, a pesquisa da natureza na promoção da ciência. Jan Van Kessel (1626-1679) cuja mãe Paschasie era filha de Jan Brueghel o Velho, pintou, como os artistas das coleções reais às vezes chamadas “museus”, gabinetes de curiosidades, inclusive quatro Alegorias dos Continentes sob a forma de gabinetes de curiosidades tão grandes como salas de palácio. Se foi apenas no século XIX que as ilustrações botânicas e zoológicas começaram a ser representações morfológicas abstratas colocando em evidência uma certa regularidade das leis biológicas, Van Kessel poderia ser considerado um precursor destas representações principalmente quanto às dos insetos já vistos enquanto objetos de colecionador, posicionados em quadros dentro do quadro alegórico. O ciclo Van Kessel (que está em Munique) estabelece uma comparação intercultural e etnográfica entre os quatro continentes conhecidos na época – Europa, Ásia, África e América, onde os painéis centrais, quase emoldurados por vistas de cidades (algumas das quais atribuídas a lugares errados) são testemunhos marcantes da cultura de cada continente, associados a coleções de animais, pinturas tipo diagrama com insetos, etc. (1) Os quadros de flores, de animais e, em especial, de insetos pintados por Van Kessel estavam mais próximos da nova abordagem empírica de pesquisa dos analistas de microscópio (como Marcello Lapighi, Jan Swammerdam, Antoni Van Leeuwenhoek) do que das concepções botânicas e zoológicas vindas da antiguidade. No centro do quadro A Europa, um homem de barbas , possivelmente o próprio artista, apresenta várias espécies de borboletas, insetos e flores em quadros posados em cadeiras, no chão e num cavalete. É notável a idéia do pintor assinar o quadro completo com o seu nome em forma de minhocas e lagartas contorcendo-se num dos quadros mais pequenos. (2)
Estas letras formadas por bichos lembram as danças dos insetos de Ana Elisa, elaboradas em calcogravuras como as suas “cirandas” e a “gavota para moscas”, que, ao ensaiar movimentos coletivos, configuram desenhos, composições de conjunto. Antes de tudo animados pela força de uma música invisível, imaginativa, os insetos se engajam em um bailado que os retira da imobilidade da coleção, rompendo com a rigidez classificatória que os congela na morte (o que poderia ser entendido como a classificação sem sentido da ciência, ou a que se impõe por interesses utilitários, o que pode tomar conta do colecionador como o fetichismo capitalista). Por outro lado, Ana Elisa ressignifica coleções tais como as de Fritz Plaumann, retirando-as da intenção empírica que as imobilizava dentro de um quadro puramente racional, ao voltar ao espaço barroco alegórico das primeiras coleções. E de fato, enquanto danças visíveis, as composições coletivas de Ana Elisa parecem levantar vôo, e, em sua plasticidade, poderiam até formar letras, comparáveis às contemporâneas metamorfoses das mulheres-letras de Erté (3). No entanto, quando o observador toma uma certa distância, pode perceber que, em lugar de insetos, há formações anamorfóticas tais como guirlandas de flores e folhas. Percebe-se então linhas de insetos não necessariamente em fila, mas em agrupamentos arredondados formando frouxos laços, indo e vindo em direções diversas, e que às vezes se posicionam até de frente um ao outro. O efeito geral que isso provoca é o de ver flores meio murchas, cujas pétalas ou folhas, em seus formatos longos e transparentes, à feição de asas, e caules desenhados em riscos, qual antenas, ou pernas e braços, se unindo uns aos outros e se movendo sinuosamente na tela, em movimentos de vôos circulares, o que empresta ao conjunto um jogo de distância e aproximação, de maior e menor, de distinção de enfoque e de evanescência, de plenos e de vazios. Mais distante, uma pequenina aranha, desenhada em baixo, parece estar à espreita.
Em um de seus trabalhos, é interessante verificar este teatro da natureza morta em que os restos mortais de pássaros com seus bicos para baixo e penas esgarçadas, em pleno processo de deterioração, estão dispostos lado a lado, junto com um rato morto, que, um pouco abaixo deles, evidencia-se em seus pêlos escuros, dentro de um retângulo, todos eles se destacando de um fundo quadriculado, que extrapola os lados menores do retângulo e que, por sua vez se emoldura, na parte de cima com galhos e folhas e, na de baixo, com insetos que se acumulam, enfileirados ao longo da parte horizontal de fora do retângulo, e também, como em cima, de novo se dispondo na forma espelhada sinuosa dos galhos, à guisa de moldura, lembrando de leve a ciranda da outra gravura. Pode-se pensar que os insetos ficam propositalmente de fora deste quadro fossilizado por participarem de um espaço mais vivo que morto. Mas o rato teria entrado em busca dos pássaros em decomposição e teria ficado igualmente preso no quadro? A morte torna-se enigma de tempos diferentes que parecem indicativos de uma cena mais primitiva, a da caça entre predador e vítima, posterior e igual à que se passa entre animal e colecionador. Portanto há um drama no espaço-tempo entre o que é lido e o que é visto, na recomposição dos acontecimentos pelo observador.
Moscas, baratas, ratos, morcegos, aranhas, animais de um cotidiano sinistro ou menos enfocado, aparecem ampliados nas gravuras de Ana Elisa. De fato, “Epeira” é o nome de uma gravura que mostra uma aranha imensa, acomodando-se em seu espaço de 50cm por 70 cm. Sua forma é poderosa, aveludada, em tons de marron-terra. Assim também, a gravura “Morcego” mostra o animal de asas abertas, como se estivesse posando para o observador, mas de cabeça para baixo, como é de seu costume ficar, pendurado de asas fechadas. Bem mais abaixo, já não surpreende o desenho de uma mosca indicar-se como a vítima do morcego. Assim também , na gravura intitulada “A sombra do sapo”, muitos insetos detalhados em seus desenhos de diversas formas, borboletas, taturanas, moscas, mariposas, besouros, etc., dispostos lado a lado como em uma coleção, tornam-se pano de fundo ornamental para a forma geométrica e escura de um sapo que se delineia ameaçador, chapado e contrastivo, no meio deles, semelhante a uma imagem marajoara. Outro exemplo interessante é o de um caranguejo do tipo guaiamum, mostrando suas patas segmentadas, e em sua carapaça dentada onde se reflete uma espécie de ramagem, parece estar sendo perseguido por um arbusto marinho ou alguma criatura nele escondida. Na gravura “Ausência” , como em outras, os insetos (aqui, além de outros menos conhecidos ao leigo, os facilmente identificáveis são moscas, besouros, escorpião, mariposa, vespa, etc.) se dispõem ao modo do colecionador, com suas características bem definidas, deitados, de asas abertas, ainda que não se veja, como nos outros casos, os alfinetes que os delatam como peças de coleção. Só que uma aranha apenas delineada, e não preenchida, fica no centro da composição: uma presença ausente. Aqui a arte de imprimir da gravura mostra-se em seus contrários: a aranha se vê como um vazio do que já tinha sido preenchido de tinta antes de impresso no metal. Todos os outros insetos parecem estar em volta dela, de frente, de costas ou de lado, mostrando o caráter ornamental da composição.
As posições dos insetos causam estranhamento nas gravuras de Ana Elisa: em “Composição com baratas”, por exemplo, as baratas, assim como muitas outras espécies de insetos, são vistas ora deitadas lado a lado que é a posição mais convencional, ora de frente, mirando o observador, fato curioso que empresta qualquer coisa de cômico, pois inadvertidamente, dá expressões humanas aos insetos, com suas antenas fantasiosas. Aqui os sapos, menores e mais magros que os insetos, invertem os papéis predadores:
Fica evidente o diálogo com os quadros de coleções do século XIX, cuja expressão tardia tem o reconhecido exemplo de Fritz Plaumann, já no século XX, tendo a sua origem de classificação científica nos quadros alegóricos mencionados de Van Kessel, além de referências artísticas diversas, o que ressalta, principalmente, o caráter ornamental das composições. E, quando isso acontece, parece que o lado humano dos insetos é trazido à tona dos desenhos. Esta humanidade/deshumanidade dos insetos lembra aqueles singularmente captados em epígrafe pelo escritor pernambucano Osman Lins na narrativa “Noivado” em Nove, Novena (1966) parecendo invadir o texto através da voz de um dos narradores que, perscrutando um mundo microcósmico subterrâneo, multiplica-se, à feição dos insetos de Ana Elisa, aparecendo fotografado em várias idades, em tempos diferentes do tempo do presente da narração, o que denota, sem dúvida, um interesse similar em explorar um espaço-tempo legível e visível. Lins disse uma vez, pensando sobre sua própria obra, que “o ornamento tece o mundo”. Poderia te-lo dito sobre a de Ana Elisa. Evidentemente, a ornamentação barroca liga a arte ao universo, voltando com sua força revitalizante através de novos modos de narrar implicados em deslocamentos industriais (as lentes de ampliação de microscópios equivalem, na indústria cultural, ao “close-up” das telas de cinema) dos modos simultâneos de olhar. Esta narrativa específica de Lins, pode ser comparável a uma narrativa cuja leitura fica implícita às gravuras de insetos de Ana Elisa, e compõe-se essencialmente de dois narradores-personagens noivos há trinta anos: Mendonça, o burocrata que se afasta da noiva para investigar um problema de contaminação de vidros por insetos na repartição, e que termina fatal e kafkianamente a agir como eles ao proliferar-se a partir de suas próprias teias, e Giselda, cuja memória proustiana voluntária escolhe, na simultaneidade das imagens do noivo que a visitam, o ardoroso Mendonça de dezessete anos:
Uma noite foram dez os que vieram, ocuparam o sofá, as seis cadeiras, o banco do piano, todos irados, numa agitada conversa a respeito de grades e portões. Infelizmente, são em geral esses três que me visitam. O de sessenta anos faz-me lembrar um zoológico onde todos os bichos estivessem mortos e mesmo assim visitados. Mas uma noite eu o vi aos dezessete anos. Encheu a sala de sons, contou a história da primeira mulher que se deitou com ele, ouviu-me. Há mais de quatro anos aguardo seu retorno. Desejaria revê-lo, ardoroso e sensível, talvez um pouco perverso, com seu rumor de címbalos e guizos. (Nove,Novena, pp.151-169)
O espaço do Mendonça de sessenta anos, como um “zoológico onde todos os bichos estivessem mortos e mesmo assim visitados” é análogo ao espaço das aves da coleção em decomposição de Ana Elisa, um espaço racional, representativo de uma crítica ao processo de deterioração das coleções : sua imobilidade não se renova, mas se prolifera. Já o Mendonça de dezessete anos “ardoroso e sensível” “com seu rumor de címbalos e guizos” seria comparável, aos insetos em pleno vôo de Ana Elisa em sua leveza esvoaçante, representando uma renovação ou até um modo de ressignificar a coleção, ao buscar novas formações de conjunto através da diversidade dos posicionamentos, dos preenchimentos de sentido trazidos à tona a partir do próprio observador, do movimento dos insetos ao serem vistos dentro de um drama predatório, ou simplesmente em pleno vôo imaginativo. De maneira que a arte de Ana Elisa, ao interferir no espaço do colecionador, como o faz exemplar e coincidentemente no de Fritz Plaumann, o “senhor das borboletas”, pode revalorizar tanto a coleção como o colecionador numa volta que, para além de histórica, é pré-histórica, permitindo-nos imaginá-lo novamente caçando borboletas, ele próprio o caçador/predador que se omite em suas coleções, mas sobretudo o caçador apaixonado, como o Benjamin em “Caçando borboletas”:
“Se uma vanessa ou uma esfinge [nomes de tipos de borboletas], que comodamente poderia ter alcançado, zombasse de mim com vacilações, oscilações e flutuações, então teria querido dissolver-me em luz e em ar a fim de me aproximar da presa sem ser notado e poder dominá-la. E esse desejo se fazia tão real, que lufavam sobre mim, que me irrigavam, cada agitar e cada oscilar de asas, pelos quais me apaixonava. Entre nós começava a se impor o antigo estatuto da caça: quanto mais me achegava com todas as fibras ao inseto, quanto mais assumia intimamente a essência da borboleta, tanto mais ela adotava em toda a ação o matiz da decisão humana , e por fim, era como se sua captura fosse o único preço pelo qual minha condição de homem pudesse ser reavida.” (4)
Notas
(1) Schneider, Norbert. Naturezas Mortas A pintura de naturezas-mortas nos primórdios da idade moderna. Tradução Adelaide Cervaens Rodrigues e Teresa Carvalho. Alemanha:Taschen,1999,p.159-160.
(2) Schneider, Norbert. Naturezas Mortas A pintura de naturezas-mortas nos primórdios da idade moderna,pp.160-162.
(3) Barthes, Roland. Erté in O Obvio e o Obtuso. Tradução de Isabel Pascoal. São Paulo: Editora Martins Fontes,1984,pp.93-111.
(4) Benjamin,Walter. Rua de Mão Única In Obras Escolhidas II Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo : Editora Brasiliense,1995, p.80.