por Nadja de Carvalho Lamas
O Seminário Martinho de Haro (1) reveste-se de especial significado, pois provoca uma “mirada” mais atenta à produção artística de Martinho de Haro, cuja importância ultrapassa as fronteiras de Santa Catarina. Ou seja, sua importância não se restringe apenas ao local, mas possibilita que pensemos sua obra em um âmbito mais alargado na arte brasileira.
Analiso a obra de Martinho de Haro, entre os anos de 1929 a 40, período em que residiu fora de Santa Catarina e estudou na Escola Nacional de Belas-artes (ENBA), bem como as influências e a singularidade de sua linguagem.
O enfoque é uma tentativa de pensar o período em que Martinho vai para o Rio de Janeiro, quando entra na ENBA, sua participação no Núcleo Bernardelli (1927 a 1937) e na 38º Exposição Geral de Belas-artes, também denominado Salão Revolucionário ou Salão de 31, e a influência deste período em seu percurso artístico.
Martinho chega ao Rio de Janeiro em 1927 para cursar a ENBA, com bolsa de estudo oferecida pelo Estado. Havia conquistado o primeiro lugar no concurso de ingresso, naquela que era a referência maior em termos de formação institucionalizada no campo das artes plásticas e, então, responsável no Brasil pelo sistema da arte, que se baseava nos cânones da arte neoclássica. O ensino na Academia de Belas-artes pressupunha o total domínio da técnica e o rigor na submissão dos princípios acadêmicos, cuja consagração se dava na medida da conquista de prêmios e medalhas, no salão oficial. A sua inserção e o reconhecimento no sistema advinha do aprimoramento técnico e, por conseqüência, da demanda de encomendas oficiais.
Com o advento da proclamação da República e em meio a reforma do ensino, a Academia passa por mudanças, cria-se então a ENBA e o Conselho Superior de Belas-artes. O embate entre uma visão conservadora da arte e seu ensino, capitaneada pelos “positivistas”, e o grupo de professores/artistas vinculados a uma visão “moderna”, foi instaurada. E em dezembro de 1930, Lúcio Costa (1902-1998), jovem arquiteto é nomeado diretor da ENBA.
A permanência de Lúcio Costa é de certa forma curta, porém, gerou profundas mudanças. Em primeiro lugar porque sua postura foi de conciliação, manteve os professores arraigados à visão acadêmica, porém trouxe novos docentes, cuja visão se alinhava a uma concepção moderna. Ao confrontar no mesmo espaço formas opostas de pensar arte, propiciou espaço para reflexão e fez emergir dentro da escola a percepção do que ali se fazia e, em que medida esta estava em descompasso com as transformações decorrentes da Semana de Arte Moderna, em 1922. Sua política de gestão da escola, sem atitude ditatorial, revelou uma grande sensibilidade e capacidade de provocar mudança.
Martinho de Haro chega na ENBA três anos antes da nomeação de Lúcio Costa, portanto conviveu com o período de transição entre um momento e outro. A individual realizada em Florianópolis, no ano anterior, 1926, revelava um pensamento artístico singular, alinhado a uma visão antiacadêmica, uma interpretação e um olhar sensível para a realidade. Características que o coloca, obviamente, ao lado do grupo de resistência à linha conservadora da escola. Sua visão de mundo refletia mais do que mudanças formais na construção da obra, o espírito e uma postura moderna.
Na escola teve orientação de Rodolfo Chambelland (1879-1967), exímio retratista, professor na cadeira de modelo vivo, vindo a substituir seu mestre Zeferino da Costa; e Henrique Cavalheiro, pintor, desenhista, caricaturista e ilustrador. Segundo Walmir Ayala (1933-1991), deste último Martinho foi particularmente influenciado nas “trilhas modernistas”. Mas a convivência com Ismael Nery (1900-1934), Rego Monteiro (1899-1970), Alberto Guignard (1896-1962), Cândido Portinari (1903-1962), entre outros, foi igualmente significativa no seu percurso, pois havia troca e por conseqüência o amadurecimento de uma concepção artística de espírito moderno.
A iniciativa de Lúcio Costa em criar condições de abertura de perspectiva na ENBA, foi pouco a pouco gerando atitudes de resistências, no porão da escola artistas se reuniam em efervescentes produções e discussões artísticas. Neste clima, o então diretor, faz do Salão “a principal atividade do poder central ligada às artes plásticas” (VEIRA, 1994), uma versão que quebrasse com a forma tradicional que até então se desenvolvia, tanto na concepção como na sua forma de apresentação das obras. Para organizá-lo forma uma comissão composta por Manuel Bandeira (1886-1968), Anita Malfatti (1889-1964), Celso Antônio (1896-1984) e ele próprio, enquanto diretor.
A 38º Exposição Geral de Belas-artes, de 1931, ou Salão de 1931, não teve seleção, afim de que possibilitasse a participação das diversas correntes. Isto é, tanto artistas acadêmicos como artistas de vanguarda tiveram oportunidade de mostrar o que desenvolviam em seus ateliês, e em alguns casos não tinham como dar-lhes visibilidade. Organizadas por tendências e com concepção diferenciada de outras, versões do salão, esse se transformou em marco na arte brasileira do século 20.
Lúcia Gouveia Vieira (1994, p.29) em uma importante pesquisa sobre este Salão coloca que
O Salão de 31 mais do que uma simples conseqüência da Semana de 22 é não apenas o contexto político-cultural no qual ele ocorre, mas também o significado que assume diante da formação artística brasileira o estatuto da Escola de Belas-artes, palco dos acontecimentos. O que ocorreu em 31 foi uma ruptura institucional mais do que artística […] mais do que um evento artístico de destaque, assumiu m significado político-cultural revelador da arte moderna em nível nacional. Se a Semana de 22 realizou o trabalho de choque, o Salão de 31 sedimentou e irradiou o novo.
Paulo Herkenhoff (1994), no texto de apresentação da pesquisa de Lúcia, coloca que o “Salão de 31 foi, no século 20, o mais compreensivo da arte brasileira que num dado momento se produzia […]propôs um projeto de modernização do evento”.
Walter Zanini (1983) na sua análise entende que esta “exposição funcionou como um marco de conscientização de uma realidade artística por muito tempo quase só circunscrita a São Paulo e a casos isolados no Rio”.
Teóricos, historiadores e críticos são unânimes no reconhecimento sobre a importância desse salão na construção do pensamento moderno brasileiro e seu significado para a consolidação da modernidade no país. Martinho de Haro participou com a obra “Busto de Mulher”, um óleo sobre tela, de 46 x 38,5 cm, pertencente ao acervo de Risoleta de Góes, do Rio de Janeiro. Quirino da Silva (1897-1981), crítico e pintor, na revista “Forma”, refere-se a esta obra afirmando que, ao mostrar a beleza mestiça da mulher brasileira, Martinho estabeleceu um contraponto à produção romântica presente no salão. Ter sua obra entre as dos principais artistas daquele momento, em particular com aquelas que materializam o espírito moderno, é sinal de que sua ida para o Rio de Janeiro, não se restringiu a fazer um curso de arte na ENBA, mais do que isso, era estar participando e contribuindo ativamente para um outro tipo de atitude artística, aquela que se pensa e se renova.
No mesmo ano de 1931, o movimento de descontentamento com a dinâmica da escola, era crescente, tanto do lado dos modernos que ansiavam por mudanças, quanto pelos conservadores que não aceitavam as propostas de renovação e se mobilizavam para que a ENBA voltasse a ser o que era, que os princípios acadêmicos, fossem retomados. Quando, então, liderado por Edson da Motta (1910-1981), fundou-se o Núcleo Bernardelli – Movimento Livre de Artes Plásticas.
O nome do grupo era uma homenagem a antigos professores da escola, Rodolfo (1852-1936) e Henrique Bernardelli (1857-1936). O núcleo permanece até 1936, como ateliê livre nos porões da ENBA, porém devido à pressão tornou-se necessário fazer a mudança para outro lugar, até extinguir-se, em 1940. As suas condições eram muito precárias e com tendências à boemia (ZANINI, 1983, p.579). O trabalho do grupo se caracterizava pelo rigor na aprendizagem da técnica, a noite pintavam com modelos vivos e nos fins de semana saiam para o campo, na busca do “quadro composto”. Os temas eram predominantemente paisagem e figura humana. Na busca de soluções plásticas procuravam não cair nas armadilhas dos chavões acadêmicos (p.580).
Deste núcleo, Martinho também participava ativamente desde o seu início, ou seja, mais vez se identifica o seu vínculo, a sua presença junto aos eventos nos quais se busca uma renovação da linguagem artística. As suas escolhas e aproximações evidenciam um artista cujo pensamento visual estava alinhado ao pensamento de renovação da arte no país.
Poder-se-ia elencar muitas outras evidências quanto a singularidade da obra de Martinho de Haro, no entanto, o fato de ter participado do Salão de 31 e do Núcleo Bernardelli, indicam por onde o seu pensamento artístico andava. A obra de característica acadêmica, embora tenha uma maior exigência e disciplina com relação ao rigor técnico e a mimese, tem maior probabilidade de reconhecimento e aceitação no sistema oficial, chances de prêmios, viagens, entre outras. Enquanto o caminho da vanguarda pressupõe um percurso muito mais difícil, cuja aceitação é bem mais complexa. A resistência é muito maior.
Martinho não faz simplesmente uma opção por esta ou aquela forma de fazer arte. O espírito de modernidade transcende uma escolha mecânica, ou de moda, para ser parte da sua essência. As obras produzidas quando retorna a Florianópolis, em 1944, dão conta dessa evidência, pois mesmo afastado do circuito artístico do Rio, ele dá continuidade ao percurso iniciado, por meio de paisagens urbanas, naturezas-mortas e retratos, que não se reduzem a um simples registro, mas pretexto para pensar uma pintura em constante renovação formal e sensível.
Se enquanto artista legou um importante acervo que possibilita uma profunda experiência estética, deixou também o exemplo de uma sensibilidade política e o comprometimento ético com o contexto em que está inserido, haja vista o seu empenho e envolvimento na criação do Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), bem como o exercício administrativo como segundo diretor. Ou, ainda, o seu desprendimento ao doar o acervo pessoal de obras de importantes artistas brasileiro, para a formação da coleção do Masc. A dinamização da cinemateca do museu, em sua casa, sua participação no Conselho de Cultura e tantas outras ações que ultrapassam a fronteira do campo da produção, do ateliê, para inseri-lo como integrante ativo politicamente na vida.
Martinho de Haro nos deixou além de um valioso acervo de obras, um exemplo de percurso artístico denso, coerente, inquieto e aberto, mas profundamente sensível.
Referência bibiliográfica
AYALA, Walmir. Martinho de Haro. Poema Rodrigo de Haro. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1986.
ARAÚJO, Adalice Mara de. Mito e magia na Arte Catarinense. Florianópolis: Secretaria de Educação e Cultura, 1977. [Tese ao Concurso de Professor Titular de História da Arte, na UFPR].
LOURENÇO, Maria Cecília França. 1945 – Operários da modernidade. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1995.
ROSSETTI, Maria Batista, MAGALHÃES, Fábio, ABRAMO, Radha In: Do Modernismo à Bienal. São Paulo: MAM – SO, junho de 1982.
VIEIRA, Lúcia Gouvêa. Salão de 1931 – marco da revelação da arte moderna em nível nacional. Rio de Janeiro: FUNARTE/ Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1984.
ZANINI, Walter. (org.) História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. 2v [vol. II]
Nadja de Carvalho Lamas, doutorado e mestrado em artes visuais (UFRGS) – História, Teoria e Crítica de Arte; doutorado Sanduíche – Université Paris I – Panthéon – Sorbonne; especialização em fundamentos estéticos para a arte-educação – (FAP/PR); docente/ pesquisadora no Departamento de Artes Visuais, da Univille e presidente do Instituto Schwanke. Membro do Conselho Municipal de Cultura de Joinville, Conselho Consultivo do Museu de Arte de Joinville (MAJ), Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA/ AICA), Associação Nacional de Pesquisadores em Arte (ANPAP).
Notas:
(1) Seminário Martinho de Haro foi realizado entre os dias 25 e 27 de outubro, em Florianópolis, como uma das ações para marcar o Centenário Martinho de Haro.