INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

Paisagens da alma incapturável

PAISAGENS DA ALMA INCAPTURÁVEL
Rosângela Miranda Cherem*

Abordarei neste ensaio algumas telas de Mariana Palma, artista plástica de formação, nascida em São Paulo em 1979. Pintadas neste novo milênio, nelas comparecem várias questões para pensar a história da arte como um procedimento realizado em camadas, composto por condensações e desvios. Revestidos de modo estranho, os objetos que povoam um ambiente quase sempre inidentificável são apresentados numa cenografia que é ao mesmo tempo figurativa e abstrata, confirmando-se pelos retratos residuais que se espalham e pelas naturezas- mortas inorgânicas que emergem. Suas paisagens cintilantes parecem ter sido extraídas de um lugar pressentido mas inapreensível, perdido para sempre numa profundeza inalcançável do tempo ou do espaço. Configurações sem função, trata-se de composições que fazem o olhar funcionar do mesmo modo que, diante das penas de um pavão ou das asas de certas borboletas, imaginamos olhos onde existem somente ocelos.

Muito já se disse sobre o fato de que a arte, como a Filosofia, remete sempre às mesmas questões, embora também se saiba que toda obra se constitui como universo ou labirinto portátil que guarda a profusão de incontáveis refrações e inumeráveis inquietações desta espécie de projeção infinita. Próximo deste ponto chega-se ao entendimento de que a obra de arte não conhece história e de que seu alcance tem menos a ver com os encadeamentos cronológicos e mais com a reinstauração de enigmas, potencializados pela conexão entre descontinuidades distintas e um olhar que acolhe na particularidade do detalhe o irredutível que retorna. Assim, se a forma da linguagem é finita, os lances que permitem realizar uma espécie de pensamento-delírio não o são, sendo que é exatamente na criação como operação de esquecimento que se produz uma ilusão continua e incessantemente renovada de que arte é sempre desvio do existente e, como tal, criação de mundo.

1 – A paisagem como mônada ou considerações sobre a geometria das dobras.

Comecemos pelas cascatas de panos e os amontoados de tecidos apresentados nas telas de Mariana Palma. Com o que se parecem? Com nada a não ser com eles mesmos: jogo de linhas e figuras que não querem reapresentar o mundo mas pensar ludicamente sua representação, construindo um campo de cores e texturas, estampas e revestimentos inverossímeis, funcionando como testemunhas que tornam a vida natural suspeita e mostram que o esplendor não passa de um truque, sendo a ilusão a mais sutil das realidades.

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Abordando o barroco como função operatória, Deleuze observa as dobras que se desdobram ao infinito, implicando em desdobramentos tanto da matéria como da alma. Considerando a questão a partir de Leibniz e aproximando-a mais do conceito benjaminiano de alegoria do que da noção de imagem, tal como entendida pela Psicologia da Percepção e mesmo da noção de corpo tal como tratada pela Fenomenologia, o filósofo remete à idéia da casa em cujo andar inferior caberiam os organismos e amontoados viventes, enquanto no andar de cima caberia à alma, caracterizada como o próprio espaço sem janelas e alheio à exterioridade. Todavia reconhecendo a divisão infinita e as porções contaminadas e circunvizinhas, observa a textura porosa que opera nestes espaços, recusando a mera compartimentalização em proveito das contigüidades ou labirinto de continuidades, cuja menor unidade é a própria dobra em incessante movimento.

Assim, diferentemente do quadro como modelo exterior e em conformidade com a perspectiva renascentista da janela, a noção leibnizeana de mônada relaciona-se à câmara escura e à cela, onde todas as ações são internas e a luz só chega ao próprio ocupante do espaço como fenda no meio de trevas. Foi nesse mesmo regime de luzes e cores que El Greco pintou O enterro do Conde Orgaz, cuja claridade relativa e figuras sem contorno remetem a um fundo comum e a uma natureza obscura. Reafirmando a matéria como expressão de uma vastidão sempre exterior e uma profundidade infinita, também pintou O Cristo no Jardim das Oliveiras lembrando a virtualidade incessante do teatro das matérias e destacando no acúmulo das espessuras e na duplicidade das dobras apresentadas em primeiro plano, um mundo que não possui existência fora delas e que se multiplica de modo cada vez mais distanciado do centro.

Enquanto o fundamento do perspectivismo é o sujeito que se instala num ponto de vista, sendo a extensão uma espécie de repetição continua deste ponto, na concepção barroca o contínuo é feito tanto da distância entre os pontos de vista como do comprimento produzido pelas diferentes curvas, sendo que seu movimento impõe um pathos de distância entre as mônadas, desdobrado em milhares de inclinações e amplitudes, determinações e solicitações. Então, se perceber é perceber nas dobras, desdobrar é sobredobrar. Em sua condição drapeada, o pensamento, como a mônada, impõe um mundo infinito como modelo ótico e a geometria da percepção curvilínea corresponde a uma arquitetura da visão para um momento de crise: “antes de o mundo perder seus princípios, o esplendido momento em que alguma coisa se mantém em vez do nada, em que responde à miséria do mundo com o excesso de princípios”. (nota 01)

2 – A paisagem como véu ou implicações de um fundo que sempre retorna.

Tomemos uma outra série de imagens pintadas por Mariana Palma, observando agora seu caráter excessivamente ornamental, trabalhado por uma espécie de exímio joalheiro que produz algo tão minucioso e secreto que apenas através de uma fração e só raramente este esforço poderá ser percebido. Por que ela o faz se sabe que é dispêndio? Por que cria estas superfícies, o que elas guardam ou a qual vazio remetem? Até onde é possível compreender seu preciosismo ornamental ou por que não procura simplesmente contorná-lo?

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Pensemos o caso dos retábulos proto-renascentistas como objetos que guardam a passagem do mundo medieval ao moderno e que, em sua forma como em seu conteúdo, parecem conter as tensões provenientes desta trajetória, respondendo de modo diferente a uma problemática do espaço. Enquanto em alguns deles observa-se uma certa fidelidade narrativa, noutros prevalece a força das alegorias religiosas. Porém, em meio à profusão decorativa ou às referências teatrais e escultóricas, além de um esforço pela precisão anatômica, pode-se freqüentemente reconhecer um desejo de esquadrinhar a paisagem, dispondo tanto as minúcias arquitetônicas e figurações divinas, como os reinos vegetal e mineral, humano e animal.

Sem ignorar o fato de que estas obras quase sempre estão divididas em duas ou mais partes, oferecendo-se como janela que remete ao sagrado, convém lembrar os casos onde, já no primeiro plano, elementos como rochas ou vegetações, colunas ou ruínas, detalhes de ourivesaria ou cortinado assinalam uma espécie de cenografia que se deslinda como oferenda de cores e formas. Assim compreende-se que cumprindo a função de véu que nem cobre nem descobre mas apenas encobre, a pintura remete aquilo que Lacan chamou de empuxo, ou seja, o jogo infinito entre o olhar e a visão. E posto que “ver é devolver, é dar um olhar” (nota 02), é precisamente nesta articulação que podemos nos pensar como seres olhados no espetáculo do mundo. (nota 03) Reviravolta do olhar, que acolhe o ver-se vendo-se e implica num olhar imaginado por mim no campo do outro.

A esse propósito, é o próprio psicanalista quem lembra a célebre disputa entre Zeuxis e Parrásio, narrada no século I d.C. pelo enciclopedista Plínio, o velho: entre a perfeição naturalista das uvas pintadas que confundiam os pássaros e a ilusão da cortina cobrindo uma parede, o crédito foi para o artista que fez o olhar triunfar sobre o olho. Ao pintar o véu, Parrásio demonstrou que o olhar sempre busca um através, um fundo marcando a pintura como um jogo de opacidade, que situa no quadro um lado de fora, oferecendo-se como pastagem ao olho e buscando aquilo que ultrapassa o campo da visão. Enquanto um enganou animais, o outro confundiu o próprio artista oponente, condensando neste episódio o fato de que é sempre um mais-além que se busca, sendo que, na ilusão de reencontrar a coisa como paradoxo da criação, o artista pode apenas contornar aquilo que jamais alcança e nada mais faz do que figurar a experiência do vazio a partir de desarranjos e desencontros.

Prosseguindo na reflexão sobre o fundo que sempre se coloca fazendo o olhar perfurar a superfície, retornemos aos retábulos como elo entre uma antiga tradição de afrescos em paredes e catacumbas e um olhar moderno que tudo perscruta, percorrendo desde os detalhes reveladores da quintessência e do supralunar até a infinita variedade dos domínios sublunares. Todavia, observando atentamente aqueles objetos, compreende-se que a perspectiva renascentista não é o oposto mas parte constitutiva do trompe l’oeil, assinalando a ilusão não apenas como um atributo da pintura mas como uma realidade que ultrapassa a presença das coisas para remetê-la à condição de aparição mais longínqua.

Simulando uma terceira dimensão, estas superfícies registram uma presença que se afirma mediante o desfalecimento da realidade. Neste caso, suas figuras remetem à dramaturgia do invisível obtida pela eficácia da imagem como incorporação do sagrado, apresentando-se como um fenômeno paradoxal da visão alcançado pelo delírio como experiência mística, empreendimento pictórico cuja força dirigia-se aos efeitos de transfiguração onde o divino se revelaria.(nota 04) Portadoras de uma exatidão que atinge aquele que para elas se volta, as imagens dos retábulos desfazem a evidência do mundo através do recurso de uma mutação que embaralha os sentidos, especialmente produzindo uma confusão do código visual, onde a centralidade retiniana é substituída pela realidade táctil, desdobrando um jogo de casualidade que se afirma pelos objetos e seres que servem para fazer pensar a existência, através dos vestígios por ela deixados e que a elas remetem.

Questão que, ao mesmo tempo, funda e solapa o fenômeno do olhar, emoldurando ou preenchendo o vazio dos corpos e cenas, as imagens ali contidas parecem dirigir-se intimamente a quem para elas se volta, ao mesmo tempo em que remetem ao vazio, ao exterior e ao indefinido, “fundo sórdido sobre o qual ela continua afirmando as coisas em seu desaparecimento”. (nota 05) Assim o que elas preenchem refere-se a uma ausência indeterminada da forma, ou seja, a uma sorte de humanização do informe, retirando a obscuridade do destino em sua essência, que é a de ser sombra.

Pensemos especialmente nas cenas de crucificação ou martírio, posto que ali se torna mais presente a dimensão presença-ausência inapreensível e inatural da imagem, assinalando um cadáver “na calma absoluta do que encontrou seu lugar” (nota 06) , ao mesmo tempo em que suspende a relação absoluta com ele. Aqui e em parte alguma, eis o lugar do morto que se une ao fundo, situando num antemundo, aquém ou além eterno onde a ação está impossibilitada de voltar à superfície do que restou. Imponente e soberbo, ser que triunfa e se exprime com o recurso inacessível do longínquo, o corpo morto surge como imagem da aparição original em sua mais elementar e perturbadora estranheza, remetendo ao fato de que a fixidez da imagem, como a do cadáver, “é a posição do que permanece porque lhe falta lugar”. (nota 07)

Transportado para um local situável e simbólico, o despojo passa a pertencer também a um lugar impessoal e neutro, confirmando-se como aquilo com que os viventes tentam contornar a mais inescapável condição: “íntima é a imagem porque ela faz de nossa intimidade uma potência externa a que nos submetemos passivamente: fora de nós, no recuo do mundo que ela provoca, situa-se desgarrada e brilhante, a profundidade de nossas paixões.” (nota 08)

3 – A Paisagem como rosto ou inquietações da mascarada que nos pertence.

Observemos uma última série de imagens de Mariana Palma, aquela onde a presença de um corpo é quase revelada para em seguida desaparecer deixando enfeitiçado o olhar de quem passa a procurá-lo em lugares suspeitos. Qual a origem destes estranhos fragmentos escondidos ou extraviados na paisagem? como reconhecê-los ou identificá-los, qual sua pertença, a que outro fragmento ou integridade remetem?

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Distanciando-se dos conceitos idealistas e humanistas, na passagem dos anos 20-30 Giacometti buscou um modo de pensar o mundo tribal e as fontes primitivas para além das considerações meramente formais. Assinalando o desejo de mutilar o suporte aproximou-se dos conceitos de altus e sacer, presentes também na noção de alto-baixo, sagrado-profano e violação-criação. Desdobrada como alteração e ambivalência, tal compreensão tanto interessava a Freud, como permitia aproximações com a noção batailleana de informe e acéfalo. Desse modo, o artista pôde pensar a relação da arte moderna com o cadáver e também considerar a cabeça como máscara em processo de decomposição. Em sua leitura surrealista bastante singular, particularmente através de composições horizontais, tal como em Cabeça-Paisagem, aquele escultor iria dilacerar o corpo, enfatizando a baixeza e a desorientação, ao mesmo tempo em que o sacrifício e a destruição se reapresentam na arte como instância da criação (nota 09)
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Ainda na mesma década, Roger Caillois escreveu sobre o perturbador fenômeno da psicastenia. Abordando a homocromia como o fenômeno em que a imagem retiniana é transposta para a pele através da ação automática produzida pela excitação luminosa nas células cromóforas, o que por sua vez resulta na produção de similitude de certos animais com o outro e com o meio, procurou pensar sobre esta circunstância também conhecida como telefotografia, recusando-se a simplificá-la, quer pela explicação finalista da religião quer pelo mecanicismo científico.

Uma vez que restos de animal mimetizado podem ser encontrados nas vísceras do animal predador, tal fenômeno deveria ser considerado menos como uma defesa para fins de preservação e mais como um instinto de abandono, sendo que o olho animal pode ser pensado como um veículo de fascinação que ultrapassa as soluções dadas tanto pelo acaso como pela adaptação. Ainda que sofisticada, a imitação não deixaria de ser uma armadilha e a distinção do organismo em relação ao meio estaria comprometida por um distúrbio da percepção espacial que poderia ser sintetizado pela afirmação “sei onde estou, mas não me sinto no lugar onde me encontro.” Nesta tendência à imobilidade e ao inorgânico o que se confirma é uma economia de dispêndio, verificando-se o mesmo no conhecimento e na arte, cujos movimentos mais atraentes acabam por agir como força final, resultando numa espécie de uniformidade ou anulação que conduz ao inanimado.

Desse modo, enquanto para Giacometti a escultura moderna nasce da desintegração do corpo, posto que a arte possui vínculos sacrificiais com as práticas humanas mais remotas, para Caillois em sua atração inescapável pelo meio e o outro, o olho como dispositivo de sobrevivência se transforma em fatal armadilha. Assim, em ambos os raciocínios elaborados em tempos de entre-guerras, pode-se reconhecer um território de investigações que punham em xeque os conhecimentos fundados na certeza retiniana e nos preceitos da razão como instrumento de progresso e emancipação. Não à toa, neste mesmo período emerge o conceito de beleza convulsa relacionado à idéia de realidade configurada, onde no interior da imagem o espaço divisório tornava-se aleatório.

Abordando aspectos que remetem ao pensamento sobre as dobras barrocas como mônadas, ao fundo da paisagem como suspensão entre um aquém- além tumular e ao ornamento como atração pelo abandono e dispêndio, Mariana Palma acaba por trazer para a superfície de suas telas as diversas camadas acolhidas pela memória e sedimentadas em meio aos empilhamentos do tempo. Sendo os efeitos de contigüidade produzidos por uma espécie de maquinaria do olhar funcionando às avessas, na tentativa de capturar a cumplicidade informulada que salta aos olhos e a alteridade que os atravessa, o que surge é uma mascarada familiar, cujo semblante que não podemos tocar assinala o enigma do inapreensível que a arte pode apenas tangenciar e que jamais cessa de retornar.

Notas:

* Doutora em História pela USP e em Literatura pela UFSC, Professora de História da Arte no CEART/UDESC, possui publicações e pesquisas sobre História das Sensibilidades e Percepções.

01 GELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o barroco. S.P.: Papirus, 2005, 2ª ed, p. 118

02 MARISN, Louis. Sublime Poussim. S.P.: Edusp, 2000, p. 165

03 LACAN, Jacques. O seminário.Livro 11, os quatro conceitos da psicanálise.R.J.:Ed. Zahar,1998, 2ª Ed. p.76

04 DIDI-HUBERMAN,George. Devant l’image. Paris: Lês Editions de Minuit. 1990, capítulo 4.

05 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. R.J.: Ed. Rocco, 1987, p.256

06 Ibidem, p. 258

07 Ibidem, p. 260

08 Ibidem, p. 263.

09 KRAUSS, Rosalind. La originalidad de lavanguarda y otros mitos modernos. Madrid: Aliana Ed, 1985, p. 64 a 98

10 CAILLOIS, Roger. Mimetismo e psicastenia legendária. Revista Che Voui, ano 1, nº, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, Porto Alegre: 1986.

Relação de figuras pertencentes ao corpo do texto:

01 – s/ título, 2006, óleo sobre tela, 169 x 208 cm
02 – s/ título, 2006, óleo sobre tela, 100 x 60 cm
03 ––s/ título, 2005, óleo sobre tela, 103 x 103 cm
04 – Piquenique ( Tarde Distante ), 2004 óleo s/ tela, 150 x 240 cm
05 – Anestesia para Flutuar, 2003, óleo s/ tela, 100 x 100 cm
06 – s/ título, 2005, óleo sobre tela, 153 x 273 cm
07 – Anestesia ( para transbordar ) II, 2002, óleo sobre tela 92 x 92 cm
08 – Carne Rápida, 2004, óleo sobre tela 40 x 60 cm
09 – s/ título, 2005, óleo sobre tela, 143 x 183 cm