INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

n. 3 – Entrevista

Revista Eletrônica um ponto e outro nº 03 – Ana Elisa Dias Baptista

Revista do programa de exposições do Museu Victor Meirelles

Entrevista

Esperança no diálogo

por Néri Pedroso

O bom humor marca a conversa com Ana Elisa Dias Baptista, artista de São Paulo que está expondo “Ciranda”, no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis (SC). Com risos e vibrações, deixa evidente uma mulher espontânea, sem temor de compartilhar seu fascínio pela morte e até um pouco da intimidade com o artista Marcelo Grassmann com quem está casada há dez anos. Nesta entrevista, realizada com exclusividade para o site Net Processo e a revista eletrônica “um ponto e outro”, ela avalia a própria arte, revela algumas de suas preferências estéticas e discute o tema da exposição. Analisa, também, a sociedade em crise, lamentando que o valor existencial do século 21 esteja centrado no carro, no celular, na roupa e na lipoaspiração, quinquilharias e atitudes que fazem a alegria de uma indústria destrutiva. Esperançosa e otimista, aposta nos interlocutores e continua resistindo, insistindo na busca permanente de um diálogo com o outro. Certa de que a obra prescinde do artista a equipara às “cápsulas ou mensagens em garrafas atiradas para o futuro”.

Um ponto e outro – Pensar para que serve a arte ainda é cabível no neocapitalismo, numa sociedade de risco, onde tudo virou mercadoria, medo e perplexidade?

Ana Elisa Dias Baptista – A gente sempre mantém a esperança do diálogo com o outro. Na sua impossibilidade com o outro de agora, espera-se o diálogo com o outro do futuro. São como cápsulas ou mensagens em garrafas atiradas para o futuro. Muito cedo, a obra prescinde do artista, ela se vira sozinha, digamos assim. Se conseguirmos alcançar as pessoas, ela se perpetra, caso contrário vira forro de gaveta como muita coisa na história. Mas hoje, de fato, existe uma crise cultural mundial em que o valor está em objetos. Houve um tempo em que o valor estava em ter uma pintura, um quadro, uma escultura, mostrar o conhecimento de arte, de música, ser o patrono disto ou daquilo. Hoje o valor está no carro, no celular, na roupa, na lipoaspiração, em coisas passageiras que servem a uma indústria que é, em parte, bastante destrutiva. E estamos trocando a nossa cultura, a nossa experiência humana por quinquilharias que no próximo semestre já deverão ser trocadas por outras senão a gente não vai parecer tão bacana. É uma crise, a transição do objeto de status para essas quinquilharias que fazem a alegria das indústrias, mas culturalmente não querem dizer absolutamente nada.

Um ponto e outro – Como você situa, então, neste panorama um tanto desolador o papel da arte?

Ana Elisa – É resistir. É continuar. Sobreviver. Esse vazio eventualmente será esfacelado na cara das pessoas. Todo mundo envelhece, o indivíduo envelhece, a sociedade também envelhece. Quem já viveu bastante sabe que a sociedade enfrenta períodos adolescentes para depois entrar num declínio, numa maturação e numa renovação, um renascimento. A gente pode só apostar no futuro e continuar insistindo. Eu encontro interlocutores, minha obra encontra interlocutores, eu persisto.

Um ponto e outro – Você é otimista? Como se define?

Ana Elisa – Eu sou otimista, até contra a própria opinião do meu marido, que também é do meio. Sim, sou, no geral tenho um otimismo na pessoa. Acho que mesmo em grandes vicissitudes vamos aprender, porque o que estamos vendo é que a hora do troco está chegando e será muito mais breve do que esperávamos. O futuro apocalíptico é daqui a duas ou três décadas, não haverá mais a data exibida no início dos filmes de 2300, 3010. É agora! O oceano vai subir agora, teremos de nos virar para ver o que fazer com a Holanda, a Inglaterra vai virar um arquipélago. Agora é a hora do troco, é agora a hora da mobilização. O que está na atmosfera não pode sair da atmosfera, então o sofrimento é inevitável e começa pelos pobres. A globalização trouxe um movimento extraordinário de pobres miseráveis. Num certo período, no início do século, pobres havia muitos, mas não havia tantos miseráveis como hoje. E quando as populações – aí é uma visão um pouco apocalíptica – serão obrigadas a se mudar será um colapso, porque não serão os nossos, mas os miseráveis dos outros que batem à porta: “Nós queremos aí, porque é terra seca, nós queremos aí porque vocês têm água doce”. Será a comodities mais preciosa do futuro. Você pode ficar sem petróleo e sem ouro, mas sem água não fica.

Um ponto e outro – O que motivou a se inscrever no edital do Museu Victor Meirelles?

Ana Elisa – A esperança !! (rs) É claro!! Sou uma pessoa extremamente otimista e esperançosa. Eu inscrevo em vários editais, não passo em vários, mas inscrevo.

Um ponto e outro – Havia alguma referência, expectativa, algum desejo? Ou era apenas mais um edital no meio de muitos outros?

Ana Elisa – Você está sempre buscando interlocutores, as pessoas que estarão diante da obra. Mesmo que não fale pessoalmente com elas, a obra falará. Eu espero que fale. E espero ter um contato com as pessoas até para dizerem: “Ah isso não me disse nada”. Preciso ter um momento de reflexão e isso só tenho nas exposições, ouvindo as pessoas. É claro que tenho um grupo de amigos, com quem converso seriamente, tem filósofos, artistas de outras áreas, mas quero ouvir a opinião do leigo, quero ver se toco as pessoas, se está passando.

Um ponto e outro – Você valoriza bastante o interlocutor…

Ana Elisa – Algumas obras minhas têm aspectos narrativos, não digo com início, meio e fim, mas uma pequena linha, os insetos cantam, tem inseto com balãozinho, falando alguma coisa. Numa das gravuras tem toda uma historinha, uma relação da banda de baixo com a de cima, os insetinhos de baixo se relacionam com os de cima. Algumas realmente são muito narrativas, a bandeirinha pirata da gatinha com ossinhos, é uma imagem plenamente identificada eu acho, sobretudo os ossos em X embaixo de uma caveira. São pequenas narrativas, reforçando a idéia de buscar o diálogo com o outro. Talvez por isso a não abstração, talvez por isso a figura reconhecível.

Um ponto e outro – Na impossibilidade de raramente circunscrever a morte, sobretudo na cena urbana, que sentido assume a sua obra?

Ana Elisa – De fato, há uma negação da morte que, na cidade, é empacotada e entregada para viagem – a experiência que tive com os meus parentes. Nesta sociedade que nega o tempo que passa e nega apostando na juventude como se ela fosse permanente, os fofoletos enchem as caras com as substâncias necessárias para esconder as suas rugas de expressão, enfim, toma-se uma série de outras providências para fingir que o tempo não passa.

Um ponto e outro – Você falou fofoletos?

Ana Elisa – Os queridinhos, as pessoas. Os fofoletos ficam nessa fantasia de que o tempo não passa e no horror que ela esconde, que é o medo do envelhecimento sem imaginar que se colha frutos da experiência. A experiência também não é valorizada neste país e talvez não seja valorizada neste continente, em parte porque é um continente novo, não sei. Mas eventualmente, nem que seja por uma gripe da ave, a morte baterá às nossas portas como civilização, como povo, como ocorreu na Idade Média, na gripe espanhola no início do século passado. E aí é o momento da reflexão e de saber o que realmente interessa na vida.

Um ponto e outro – Quando você começa a fazer a sua coleção de bichinhos mortos, já tinha consciência com relação ao tema? Como ocorreram essas escolhas?

Ana Elisa – Já. Sim, antes mesmo da série dos insetos, da “Perinde ac Cadáver, Morte Vermelha”. Desde criança sou um pouco soturna e o que é um contra-senso. Sempre fui profundamente otimista e, no entanto, soturna. Há esses pólos que coexistem. Sei que é preciso esquecer para viver, se não se vive em angústia, o que é um dos problemas também, porque em vários momentos esqueço que tenho de esquecer e vivo essa angústia, tenho palpitações, dificuldades para dormir. Você se cura um pouco desta angústia no trabalho. Consigo, eventualmente, trabalhando, porque ocorre um distanciamento, começo a ter outras preocupações estéticas, técnicas.

Um ponto e outro – Você buscava o tema?

Ana Elisa – Sim, buscava, eu tinha sempre caveiras. Quando a minha avó morreu fiz uma série longa de desenhos, carroças puxando caixões, que era um sonho repetitivo. Mais tarde, fiquei me perguntando se não era uma lembrança porque em “Morangos Silvestres”, do Ingmar Bergman, tem uma dessas carroças. Muito anos depois, já casada, assistindo ao filme eu disse: “Olha a carroça que eu sonhei, não era exatamente essa”. Vi que na Europa havia essas carroças muito mais altas do que as brasileiras. Na brasileira, a lateral é alta, o caixão deveria desaparecer ali ou levava-se em rede os cadáveres. Então, eu devo ter puxado o tema de lá…

Um ponto e outro – E qual a sua relação com a morte? É tranqüila?

Ana Elisa – Não. É de medo. Medo desta última queda. Eu associo a morte a uma sensação de queda.

Um ponto e outro – Mas ao trabalhar as obras você consegue domesticar esse medo?

Ana Elisa – Consigo estetizar o medo e isso me ajuda a definir. Procuro buscar uma linguagem estética e, através da técnica e do fazer, elaboro, consigo esquecer um pouquinho e continuar seguindo, porque é absolutamente indispensável você esquecer.

Um ponto e outro – Tempo e movimento, uma ciranda. A morte. Como você a situa a ironia dentro do seu trabalho, ela aparece de forma consciente?

Ana Elisa – Sou um pouco irônica no contato, nas piadas e isso sempre aparece, é parte deste diálogo, destas historinhas, dessas piadinhas. Sim, é uma parte minha que aparece na obra, um vício meu que aparece.

Um ponto e outro – Fale um pouco da sua relação com o desenho, com a gravura, uma técnica que, parece, muitos artistas não dominam tão bem.

Ana Elisa – Diga isso para Florianópolis. Para São Paulo, não. Em 1999, no Instituto Itaú Cultural, na exposição “A Gravura Brasileira no Século 20” estávamos e éramos m-u-i-t-o-s!! Na época o Leon Kossovitch e a Mayra Laudanna levantaram, entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, 3 mil gravadores. Não é uma coisa que se possa descartar. Muitos, grande, grande, grande maioria têm trabalhos paralelos – de professor, museólogo, dentista, psicólogo. Evidentemente que o comércio de gravura é muito fraco. Para viver só da gravura uma pessoa terá muitas dificuldades. Ahh, que vive com muita, muita muita, muita dificuldade conheço vários. Como conheço também toda uma geração de gravadores, professores universitários ou que atuam em entidades, como o Serviço Social do Comércio (Sesc) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), e assim sobrevivem. E são muitos!! Participo na Internet do Grupo Gravura e é uma delícia, bate-se papo com gravadores de todo o Brasil, tem uma boliviana. É muito divertido o contato com esse pessoal. E, através deles, cheguei no Museu Victor Meirelles, porque é uma comunidade que se ajuda muito. A democratização da informação é um pouco difícil neste meio, avisar dos editais, dos prêmios…Costumo dizer que somos muitos peixes num laguinho cada mais raso, aí os peixes tendem a ficar um pouco violentos uns com os outros (rs). Se fosse um oceano, cada um acharia o seu nicho, a sua zona de alimentação e as coisas seriam um pouco mais fluidas. De fato tem essa questão e o Grupo Gravura é essencial para a troca de informações técnicas e de experiências. Às vezes um dá um depoimento de como começou na gravura, um pergunta, “olha aconteceu um problema”, coisas assim simples, de alguém dizer “estou com um problema com o meu feltro” e daí vem mensagem de todo o lado, “eu resolvi assim, assado, vai a tal lugar, fala com tal pessoa”, é como uma faculdade viva em que a aula continua ininterruptamente, recebendo lições de todos os lados, de práticos, de professores universitários. O Grupo Gravura nasceu na Universidade de Campinas (Unicamp) como iniciativa da Paula Almozara, ela é a força motriz.

Um ponto e outro – Você diz que não importa o lado plástico das coisas. Importa que o desenho e gravura sejam boas? O que é uma boa gravura, um bom desenho?

Ana Elisa – Essa é uma questão complexa, difícil, é um pouco como a questão do ovo e da galinha. A gente tem um treino. Sobretudo os que fazem universidade passam por um treino que tira, de certa forma, a inocência do olhar. Quem estuda a perspectiva renascentista, aprende regras, fórmulas e proporções, perde um pouco a inocência, vê que a perspectiva é uma fantasia, uma intelectualização da realidade. De fato as coisas são completamente diferentes, o olhar, esse olhar maluco que temos – se fecha um olho, as coisas mudam todas para um lado; se fecha outro, elas voltam para o outro lado e o cérebro se arranja para formar essa imagem – torna a realidade talvez muito menos em perspectiva do que foi o sonho da Renascença, dessa reprodução da realidade. As coisas parecem muito mais planas do que aquele pessoal sonhou. Há uma coisa muito divertida no livro do David Hockney, aquele da câmara escura, em que ele até coloca algumas imagens feitas na perspectiva renascentista que ficam muito artificiais e aqueles que lançaram mão do instrumento óptico conseguem ter noção da realidade, o grande barato dos veristas e dos flamencos e que até hoje, convenhamos, enchem o olho de todo mundo. Eu caio completamente, olho “Os Embaixadores”, do Hans Holbein, e a-d-o-r-o!! E adorarei sempre. Não obstante olho o retrato da mãe do Albrecht Dürer, que era de uma feúria terrível, mas o desenho é excepcional, um pouco porque ela é feia e tem aqueles olhinhos s-a-l-t-a-d-o-s! E um pouco porque a linha é muito boa. Então a boa obra de arte tem de ter tudo isso, um interesse, não diria uma beleza, mas um it, uma linha, porque quer, queira ou não, fui treinada para essas coisas, não posso mais dizer, “gostei, não gostei”. Perco-me num emaranhado de referências e citações, imediatamente lembro daquilo, daquele outro, de tal história, relaciono com o conto que alguém escreveu, com seres culturais. Quem passou por um ensino formal, bem ou mal, está preso ou está navegando nestes mares.

Um ponto e outro – Você falou em beleza. Você também busca, eventualmente, o belo?

Ana Elisa – Não necessariamente o belo. Se não eu faria um bichinhos um pouco mais bonitinhos. Você olha os retratos de Hans Holbein, eles são muito belos, Diego Velázquez é belo, Pablo Picasso é belo, mas também Picasso já é essa transição, já consegue colocar coisas feias que vemos como belas. Essa questão do belo na arte já ficou para trás, ainda bem. Você pode fazer, não diria o que quiser, porque também não vou engolir gato por lebre, não vou ficar vendo coisinhas espalhadas pelo chão, achar que está bacana e tem conteúdo, vendo repetição de elementos e pensar que ainda é válido um negócio que vemos em todas as bienais. Ah, o fulano vai repetir o mesmo elemento a sala inteira? Que mais ele tem a dizer? Então, essa questão de conceito precisa oferecer mais. Não acho que o belo seja um objetivo meu, mas eventualmente algumas coisas me agradam, tem algumas baratinhas que digo “puxa como essa baratinha é bonitinha!”, porque a trama da gravura agrada, ficou num formalismo e, ao mesmo tempo, é uma barata. Fica bem-humorado e me agrada. Belo seria neste sentido, mas não o bonito. Como bonito a gente poderia dizer o harmônico, o simétrico, não necessariamente, embora eu busque em muitos trabalhos o rigor, e aí a simetria, quase como se fosse um emblema…qual é a melhor palavra para isso? Não lembro…A memória, é preciso ter muito senso de humor. Agora, que estou com mais de 40 anos, algumas coisas começam realmente a desmoronar. Convivo com pessoas muito, muito, muito mais velhas, meu marido é muito mais velho do que eu, e acompanho o seu declínio. Tem de ter muito bom humor, porque de fato o negócio, a ladeirona inclina pra chuchu e você tem de aceitar.

Um ponto e outro – Você é casada com o Marcelo Grassmann. Como é essa relação? Você mais jovem e ele um patrimônio da arte brasileira…

Ana Elisa – Às vezes brinco, dizendo que ele está indo de mito a mitocôndria (rs). Ele fica tão desacorçoado com os problemas. Aos homens é mais difícil, acho, de envelhecer e mais ainda aos muito ativos como ele. Ele faz tudo, conserta máquina de secar roupa; a prensa está com um problema, troca o motor da prensa; aquela tinta não é boa, refaz a tinta inteira e faz tudo de novo. Daí dá um outro problema, vai lá e troca um dos disjuntores sem desligar, eu segurando a lanterna assim e ele trocando a coisa, mas “você não desligou a geral e tal, tá bom”, enfim. Ele é muito ativo e agora está tendo de enfrentar a limitação da idade e a perda de uma coordenação fina. Ironicamente não poder mais usar uma chave de fenda minúscula com a precisão anterior o aflige muito, ele fica tão arrasado. Não consegue mais fazer um ajuste, mas trabalha normalmente apesar de algumas limitações. Às vezes fico um pouco aflita, porque parece um filme do futuro, que se apresenta não só como o meu, mas o de todos – se vivermos tanto. É uma coisa complicada, o Marcelo vem com uma bagagem muito longa, entramos numas discussões, discutimos isso e aquilo, daqui a pouco ele voltou para a Semana de 22. Ele tem todo um passado que aflora e, de fato, é mais engraçado do que propriamente um problema. E temos a gravura em comum, muitas referências que vão desde livros e filmes que lemos e vimos em época diferentes. Os que ele viu no cinema, eu vi na TV, eu já sou da geração da TV. Então, às vezes, estamos recitando frases de desenhos animados que os dois viram em décadas completamente diferentes. A gente tem muitos, muitos, muitos pontos em comum, o que não quer dizer que seja fácil. Não é. Um homem que já esteve seis vezes na Bienal de Veneza, bienais de São Paulo, o currículo do Marcelo parece o Velho Testamento, é grossíssimo, é riquíssimo, e ele continua.

Um ponto e outro – Você é uma mulher forte. É preciso ter coragem para submeter o seu trabalho à apreciação de uma artista como ele?

Ana Elisa – Ironicamente depois que comecei a viver com o Marcelo, de certa forma, perdi o meu grande fã. Antes ganhava tantos elogios (rs) e agora recebo tantas críticas (rs). Num relacionamento você perde essas gentilezas, esses rapapés, é tudo muito sincero, “pô, mas essa tinta está um lixo, olha aqui, não imprimiu direito, você não viiiiuuuu? Seu papel estava seco demais”. Há esse embate. Sinto falta dos tempos de um relacionamento mais distante, “puxa que universo bacana, olha que coisa legal”. Quando conheci o Marcelo, foi porque a Sônia, a sua mulher, achava que ele iria gostar do meu trabalho. A gente teve esse encontro, esse diálogo e foi muito legal, ele foi muito elogioso. De alguma forma, perdi um pouquinho.

Um ponto e outro – Mas ganhou outras?

Ana Elisa – Com certeza. Ele é fanzoca como eu sou. Fanzoca e radical muito mais do que antes, claro, porque é evidente que já gostava e admirava seu trabalho, mas, agora, tenho uma relação de proteção, inevitável como sua mulher há dez anos. Agora sou uma fanzoca muito pior, porque tem todo o e-m-o-c-i-o-n-a-l, o M-a-r-c-e-l-o e tal. Mas temos essas coisas muito gostosas de curtir quando vamos às exposições, de conversar muito, de ver livros de arte e discutir, “olha você viu tal coisa e tal detalhe?”. Estávamos vendo na televisão um programa de arte, francês, meio velhinho, que mostrava a obra “Crucificação”, de Mathis Grünewald, linda, linda!! E curtimos tanto, “olha esse d-e-t-a-l-h-e, olha que beleza, olha aqui, olha ali”. Torcemos pelo mesmo time, o São Paulo, gostamos de futebol e assistimos as partidas. Temos vários diálogos, em várias camadas, mas, sobretudo, o diálogo profissional é essencial. Nos encontramos muito nestas esferas, além das do carinho, do amor. Trabalhar junto é muito difícil, porque você pode deixar a espátula secando com a tinta para o dia seguinte, mas quando é o outro que deixa, “mas essa espátula vai secar!!!” (rs) É inevitável para os dois lados. Tanto ele – “mas você esqueceu a tinta” e eu – “uhmmmm, esqueceu a tinta na espátula”. Acontece e realmente é difícil, mas vamos tocando com humor. Você pode até brigar num momento, mas depois…

Um ponto e outro – Quais são as suas referências com relação à arte catarinense?

Ana Elisa – Da arte catarinense não posso dizer que conheça, por isso tenho essa grata surpresa com esse livro (“Construtores das Artes Visuais”) e ver quantas coisas boas. O Brasil é muito ainda de cidades e estados. Precisamos se visitar mais, as mostras precisam correr os estados, sinto muita falta deste intercâmbio. Houve uma grande exposição de gravuras no Rio de Janeiro há alguns anos, que foi muito emocionante. Tem os Panoramas no Museu de Arte Moderna (MAM/SP), mas tudo muito local, no máximo dá uma juntadinha SP-Rio, SP-Minas. Quando no contato com o Grupo Gravura, percebo que tem gente de todos os estados, penso que temos de ver esse pessoal. Hoje, a Internet pode ajudar, embora, claro, seja indispensável ver a obra ao vivo. Realmente é indispensável. Percebi isso sobretudo ao ver a exposição do James Ensor, em São Paulo. Gostava, olhava as gravuras, gostava muito das pinturas, mas vê-las ao vivo foi uma e-m-o-ç-ã-o e aí entendi as limitações da reprodução fotográfica. De fato ela precisa buscar um contraste, x, y e z, para poder imprimir, tornar visível a imagem e daí mata a gravura! Todas as linhas inventadas em contraste com as linhas escuras, que criam o sentido de perspectiva, vão embora, o negócio fica plano e chato. Fiquei gratamente surpresa com as coisas daqui.

Um ponto e outro – E o Museu Victor Meirelles e a montagem da exposição?

Ana Elisa – Ficou tão acima das minhas expectativas, ficou tão bonitinho, bonito, gostoso de circular. Com o pessoal do museu fizemos aquele painel de fundo, seria de um outro jeito, a gravura central seria emoldurada também e ficaria tudo um caixotão. Acabamos decidindo por ela ficar de fora da figura para dar essa profundidade do caixote. Foi um diálogo. Não poderia ter sido melhor recebida.

Um ponto e outro – E volta feliz desta sua primeira visita a Florianópolis?

Ana Elisa – Sim, muito contente.

Um ponto e outro – E viu a revista “um ponto e outro”?

Ana Elisa – Vi, a da expositora anterior, o da Mariana Palma. L-i-n-d-o o trabalho, em camadas, l-i n-d-o!

Um ponto e outro – E agora é a vez da “Ciranda”…

Ana Elisa – É uma responsabilidade, um peso tão grande. Quando vi o trabalho dela, o da equipe do museu, pensei, nossa espero que eles não se arrependam (rs).


Depoimento da artista

à revista um ponto e outro

“Como escrevendo um diário, desenhei e desenho para não perder, aprisionando no papel aqueles ou aquilo que de outra forma desaparecerá. Em geral os modelos se apresentam para o serviço, morrendo dentro de casa ou ao menos à vista. Quando morreu um porco espinho (de uns quatro quilos) quem se apresentou fui eu, me propus a acompanhar a decomposição desenhando todos quanto participassem da ‘disposição’ da carcaça.”

“Nos trabalhos que realizei no período da faculdade e imediatamente depois o ‘real’ era um suporte para o fantástico. As imagens deste período dialogavam diretamente com sonhos, no geral pesadelos, e tenho uma série de gravuras e desenhos misturando animais e corpos humanos. No fim da década de 90 me mudei para a chácara e o real se tornou o objetivo do trabalho. Desenhar insetos era parte da disciplina cotidiana do trabalho, eram motivos que se apresentavam, alguns na verdade se estatelavam na cara, sempre com forte apelo gráfico. No entanto, demorou para que saíssem da mídia do desenho para a gravura. Foram invadindo as paisagens. Como para aprender um alfabeto novo, desenhei muito ‘tirando do real’, desenhei querendo achar tradução em linhas para os volumes das criaturas que iam se acumulando nas gavetas. Ainda hoje, dependendo do projeto, estou com a lupa de pala a postos como na gravura da mariposa com o corpo do gambá decomposto.”

“O primeiro contato com gravura foi nas obras que havia em casa, Grassmann, Segall, em re-impressões realizadas pelo Museu Lasar Segall, Guersoni. Depois já na faculdade ‘aprendi’ a técnica, porém o trabalho com gravura veio mais tarde freqüentando o ateliê de Arriet Chain e Fábio Hanna depois de 1988. Desde então me descobri artista gráfica, desenhando e gravando. Montei meu ateliê, comprei a prensa em pleno Plano Collor… Em 95, em meio a uma crise pessoal, parei de trabalhar, fiz teatro (cenários, figurinos) e, em 1997, retomei o ateliê, desenhando. Gravura a partir de 98. A drástica interrupção também apareceu no trabalho, o real se impôs e, anos mais tarde, uma colega via a gravura ‘Ciranda’ e dizia: agora você ‘voltou’.”

Para saber mais sobre a artista, acesse o site www.netprocesso.art.br