INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

n. 2 – Textos Críticos

Revista Eletrônica um ponto e outro nº 02 – Mariana Palma

Revista do programa de exposições do Museu Victor Meirelles

Textos Críticos

Mariana Palma: entre a delicadeza e o monstruoso
Por Maria Salete Borba
nena.borba@gmail.com

Ao observarmos o trabalho de Mariana Palma percebemos que além de um diálogo constante com a arte botânica, a artista paulista dialoga também com a poesia. Nesse sentido, para ler suas imagens faremos um caminho de mão dupla: da plástica para a literatura, da literatura para a plástica. Suas aquarelas até poderiam ter surgido de um jogo ou charada infantil: o que é o que é? Tem pêlo mas não é bicho; tem penas, mas não é ave; tem folhas, mas não planta; é estampado, mas não é tecido? É assim que podem ser descritas as aquarelas que compõe a exposição que pode ser apreciada no Museu Victor Meirelles de dezembro de 2006 a janeiro de 2007. Sem título, essas aquarelas, convidam a passearmos por suas curvas e volumes, freqüentemente interrompidas pelo aparecimento de uma nova forma, que igualmente brinca com o olhar, instigando, provocando, como se fosse apresentar um outro animal ou vegetal. Talvez, o que percebemos através dessas imagens é o poder de uma forma tocar a outra.

Assim, a partir do /no olhar presente, compartilhamos das idéias do pensador Jean-Luc Nancy, que nos leva a considerar que a imagem não sendo natural, passa a ser uma construção discursiva derivada da possibilidade de repetição e de corte, mas principalmente, do contato. Se toda imagem é uma construção discursiva, então a partir da leitura das aquarelas de Mariana Palma faremos nossa leitura recorrendo tanto ao repertório pictórico, quanto ao escriturário.

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1. A riqueza do paradoxo

Diante das aquarelas de Mariana Palma, nos deparamos com uma sorte de paradoxo: pequenas formas “recortadas”, que num primeiro momento lembram o trabalho de um ilustrador botânico, contrastam com o vazio em que estão inseridas. Esse vazio aqui sublinhado se repete em algumas de suas pinturas nas quais uma paisagem fantástica ou, se preferir, surreal é construída a partir da demarcação estreita entre céu e terra, figura e fundo. E, nesse jogo de vazio e cheio, nos conduz à tradição pictórica na América Latina que em seus primórdios muito deveu aos pintores viajantes. Com a Revolução Francesa os olhares se direcionaram para além das fronteiras européias, buscando conhecimento, liberdade intelectual e política, o que culminou na eterna busca pelo poder. Várias expedições traziam consigo pintores viajantes como os tão conhecidos Jean-Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas, Albert Eckhout e Alexander Von Humboldt, que organizaram arquivos visuais com a função de registrar as belezas do “novo mundo”. Nesse “registro” dois modos de ver podem ser enfatizados: o olhar liminar, típico dos navegadores que se atinham a observar de longe a paisagem – da orla, das costas e portos; e outro dos naturalistas, que adentravam a mata em busca não somente da paisagem, mas dos pequenos elementos que a compunham – plantas, animais, cheiros e sensações (nota 01). Vários foram aqueles que se aventuraram pela América Latina e principalmente pelo Brasil. No entanto, nossa intenção, nesse momento é buscar ler o trabalho de Mariana Palma como re-lembranças desses fragmentos, vestígios dessa memória que se formou e que hoje reconstituímos a cada gesto, a cada olhar.
Na paisagem ao lado (imagem 01) poderíamos dizer que temos um exemplo do olhar liminar, que contempla as formas a certa distância, mostrando o todo. No entanto, nessa paisagem o mais curioso surge das formas que, num movimento de ilusão óptica, se descolam do fundo num desdobramento infinito de cores, volumes e texturas que levam o expectador a recorrer às formas do barroco para (re) significá-las. O contraste entre vazio e cheio, grande e pequeno ocorre paralelamente à realização de um trabalho minucioso: pequenos detalhes hora integram, hora se destacam da paisagem composta por fragmentos de tecidos estampados, vegetação, entre outras formas que nos diversos planos, prazerosamente, confundem e instigam o olhar através de uma sorte de simulacro.

Ambas as técnicas utilizadas por Mariana Palma, a aquarela (trabalhada a partir do seu processo contrário, ou seja, não se detém nas sutilezas da sobreposição das aguadas), e o óleo são técnicas que nos remetem à tradição pintura e contribuem, através da luz e das transparências, para a construção de um trabalho em que sobressai a simulação e a paciência na confecção das formas. Em alguns momentos, como observamos, as aquarelas se destacam pela inevitável comparação ao trabalho realizado por botânicos, que, se dedicam à observação e a análise direta do material a ser registrado. No entanto, não estamos querendo dizer que a artista utiliza a observação como técnica; pode até sugerir, mas, vai além da simples observação. Nesse sentido, o registro gráfico de texturas próprias de vegetais, de pêlos de animais, ossos e de tecidos, representadas através de volumes, detalhamentos – corte e montagem -, apresentam como resultado um ser híbrido, “inominável”, misto de animais e plantas, mas também de outros elementos e, mesmo, de fragmentos de alguns objetos como na aquarela que segue (imagem 02).

O que para um botânico seria uma maneira de conhecer melhor o objeto de estudo, no trabalho de Mariana Palma é oferecido como trabalho final de um processo artístico. Mesmo não sendo um estudo prévio para suas pinturas, podemos pensar essas aquarelas como recortes e também desdobramentos das mesmas, que se apresentam num outro momento, procurando outros diálogos, outros olhares.

Neste trabalho podemos dizer que a natureza orgânica das imagens resgatadas pela artista: folhas, pêlos, chifres, sublinham insistentemente, como diria Georges Bataille, a descontinuidade que esses elementos apresentam num movimento infinito de montagem. Esse movimento similar ao do colecionador é realizado pela artista que “recorta” e “monta” uma terceira forma. Assim, essas aquarelas se apresentam como restos ou vestígios de um passado que retorna através da citação, pois, ao nos depararmos com essas “colagens” e “montagens” nos voltamos para o início do século XX, para o dadaísmo, surrealismo, cubismo, enfim para as vanguardas. No entanto, observamos também que, após anos de desmaterialização, há uma reivindicação por uma materialidade que culmina, justamente, com a retomada da pintura nos anos 80. Esse retorno às técnicas tradicionais reflete sua leitura da história das artes plásticas evidenciado através do seu processo artístico, que a montagem funciona como agenciador de significados nos levando a avistar e adentrar outros horizontes além da ilustração.

Desse modo, a partir do encontro de elementos distintos, possível através da montagem, outra forma surge desse contato, desse encaixe, e assim, nos deparamos com algo, que, como diria Borges, beira ao monstruoso. Monstruoso pelo fato de ultrapassar as fronteiras rígidas existentes entre as artes e entre a própria forma. Desse modo, pode ser constatado através do resultado do trabalho, a revelação de um olhar curioso: ao mesmo tempo em que absorve as informações, as devolve em imagens levando o observador à re-organizar o repertório de referências, transitando assim, entre a plástica, a literatura, a geografia e a história natural e vice-versa. (imagem 03)

2. Desdobramentos

Essas aquarelas que pairam suspensas tanto no espaço, quanto na significação, ao invés de representar algo pontual, se desdobram em vários elementos que se contrastam, se unem e se repelem num movimento sempre interrompido por outro que novamente é interrompido, e assim, sucessivamente. A semelhança que tem como resultado o monstruoso, também persegue Wilson Bueno (nota 02) autor de vários livros e um dos grandes escritores brasileiros (nota 03). Em diversos momentos de sua escritura nos presenteia com seus livros cheios de seres, que hora são contemplados de longe, hora observados de perto, montados e elaborados minuciosamente. Relata Bueno que nascido numa cidadezinha no interior do norte paranaense, a 40 km de Jaguapitã, não havia brinquedos. A diversão era a mitologia zoológica. Tanto os adultos quanto as crianças se divertiam com as histórias de um universo em que se destacava do “zoomundo” e a sua mística. Segundo o escritor são esses bichos rurais, em contínua perplexidade com tudo e com todos que serviram de ponto de partida tanto para seu Manual de zoofilia (1997), quanto para Jardim zoológico (1999) e Cachorros do céu (2005). Bueno continua e sublinha que sendo seus pais lavradores, quase índios, facilitou a sua zoolatria que se inicia nesses tempos remotos em que não tinha “brinquedos”, mas brincava com as histórias de bichos que a mãe contava. Ou seja, brinquedos virtuais, do imaginário.

Assim, podemos dizer que dessas relações íntimas apresentadas e relatadas por Bueno, vislumbramos um plus, ou seja, uma soma, que faz com que as imagens se tornem potentes, possuidoras de uma energia capaz de estimular outras leituras, outras possibilidades de diálogos com o que está ao redor, num tempo anacrônico. Assim, se as aquarelas de Mariana Palma nos levam a diversos universos, do lúdico ao botânico, com os livros de Wilson Bueno além dessa circulação por diversos territórios, temos o reencontro com outros tempos que sempre é “atualizado” no presente. Desse trânsito temos como conseqüência um escritor que persegue infinitas maneiras de “recontar” e “re-significar” o que ao longo do espaço e do tempo, divertiu e construiu a fantasia tanto do menino, quanto do homem. E, nesse sentido, pode ser dito que de suas leituras e de sua escritura, temos como resultado a ficção atrelada à surpreendente coabitação de seres humanos e animais que desfilam tanto através de citações, como através da personificação como personagens.

Nesse universo criado a partir de uma sensibilidade recuperada a cada livro, Bueno adentra satisfeito, cada vez mais, no reino “animal” no qual reflete através de um jogo, não ingênuo, de faz de conta sobre as diversas facetas do outro animal que é o homem. Em Jardim Zoológico ao invés de animais falantes, como nas fábulas tradicionais, encontramos animais re-inventados que vão sendo descritos e, ao mesmo tempo, montados a cada linha, sendo, nesse sentido, animais de uma existência, lúdica, leve e virtual que retornam em outros movimentos e outras peles. Como pode ser conferido, o retorno em Wilson Bueno é uma operação de trazer à tona, mas, com outra “roupagem” as fábulas tradicionais. Nesse sentido, trata-se de uma re-escritura em forma de palimpsestos, que se comporta criticamente sobre a primeira, desmistificando-a. Desse modo, surgem os seres monstruosos que encontramos no Jardim Zoológico, em que a existência é fruto de uma mente em processo constante de reescrever, que busca na recorrência a escritores como Ovídio, Borges e Kafka, apontar o limite existente entre ficção e a não-ficção. Assim, percebemos o quanto nos dizem as palavras de Augusto Monterroso apresentadas na forma de epígrafe do livro:

As novas gerações de escritores deverão retomar, cada qual na medida de seu talento, a inventiva tarefa que começou com Esopo, ou mesmo antes dele, de reunir os animais que pela Terra andam e hão de andar perenemente. (nota 04)

Segue a essa epígrafe uma verdadeira coleção de animais advindos das lembranças do menino que se divertia com as estórias, contadas ao pé do ouvido, pela mãe. Ao recuperar historias e, conseqüentemente escritores, dando uma voz apócrifa, Bueno contribui para o enriquecimento do imaginário dos leitores que se divertem permanecendo na dúvida, como podemos observar nos fragmentos abaixo, que descrevem três dos seres encontrados no seu Jardim Zoológico.

os giromas
O que chama a atenção neste pequeno monstro cheio de olhos é o seu formato inteiramente redondo. A rigor, não anda, antes gira feito uma bola. Tem em torno de trinta centímetros de diâmetro, ainda que Ovídio descreva alguns, nas Metamorfoses, com mais de dois metros.(…) (nota 05)
os nácares
Há registros que dão os nácares, de par em par, saltitantes e inverossímeis, pululando os cantos das casas senhoriais ou dos velhos apartamentos.
O escritor Jorge Luis Borges, zoólatra profissional, confidencia que, já inteiramente cego, certo entardecer em Maipú, chegou a ver nitidamente um casal de nácar entre o pé de uma mesa e a base de uma poltrona.(…) (nota 06)
os tarântulas
Em ‘Os Cantos de Maldoror’, o conde de Lautréamont nos dá o homem-tarântula.
A zoomítica persona não aparece contudo pela primeira vez nas venturas e desventuras do soturno Maldoror.
Vamos encontrá-lo ao homem-tarântula, muito antes, nos diários de Gérard de Nerval (1808-1855) e, posteriormente, já neste século, entre as anotações de Kafka à margem dos originais de A Metamorfose.
No mais profundo da noite vibra no éter a indagação baldia – por que Kafka se convenceu de que somente uma barata poderia retraduzir o homem, no caso, Gregor Samsa? (…) (nota 07)

Com o decorrer da leitura percebemos que mais que uma coletânea de “seres imaginários”, como diria Borges, temos ainda uma releitura dos manuais de zoologia e das enciclopédias o que nos leva ao trabalho de Mariana Palma que sugere também, através do “encaixe” uma relação com o diferente. ( imagem 04)

Abrindo um parêntese e pensando na possibilidade de colocar num mesmo espaço a artista e o escritor para lermos, lado a lado, o trabalho escriturário e o plástico, constitui-se assim, uma sorte de bestiário (nota 08). A partir do bestiário podemos pensar tanto nos lugares das “imagens” perante a lei, quanto perante o poder, pois pensando a imagem e o texto como agenciadores de significados, se extinguem as fronteiras rígidas, pré-estabelecidas pela história formal. Sabemos que não é tarefa fácil, esse processo não ocorreu tão facilmente, e nem de maneira espontânea, como nos mostra Michel Foucault em Isto não é um cachimbo. Ou seja, relacionar plástica com literatura, por exemplo, não é somente por uma legenda na imagem ou vice-versa. Michel Foucault em 1973, ao escrever Isto não é um cachimbo, nos ajuda a refletir e a observar as diferenças existentes nesta relação: artes plásticas e literatura. Já tendo se dedicado à leitura de “Las meninas” de Velásquez, em As palavras e as coisas, debruça-se dessa vez, sob os desenhos de René Magritte, nos advertindo que há algo além da imagem e das palavras.

E, assim, podemos construir uma teoria do olhar baseada no contato, quer seja das diversas formas de arte, quanto dos diversos desenhos de leitura. Num primeiro momento, aquele olhar distante, panorâmico, dedicado ao reconhecimento da “paisagem”; num outro momento, um olhar objetivo dedicado à minúcia, à colagem, conseguindo tanto camuflar, quanto suspender os significados. É na suspensão que se consegue pensar no caráter monstruoso que se apresenta tanto nas aquarelas de Mariana Palma quanto nos livros de Wilson Bueno. O monstro se torna visível, como já foi dito, através da união de fragmentos de vegetais, animais entre outros, quanto através da coleção de animais “montados” a partir de impressões, de pequenas descrições ou de algumas características comportamentais como as encontradas no Jardim zoológico de Wilson Bueno.

Em poucas palavras, o monstruoso só é possível através do contato, quer seja de formas, quer seja de leituras e re-leituras. Ou como diz Sylvia Molloy no prefácio ao Livro dos seres imaginários: “A literatura [e soma-se a essa a plástica] é, afinal de contas, uma monstruosa série de imaginações.” Assim, através da leitura do monstruoso como uma construção à posteriori à criação, que conseguimos apreender essas coleções heteróclitas que nos são dadas a ver ao longo dos tempos.

Notas:

(1) O livro de Luciana de Lima Martins realiza, com detalhes, uma bela leitura da paisagem do Rio de Janeiro a partir de pinturas, aquarelas e cartas náuticas do final do século XIX. [MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes. O olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001].

(2) Entre outros livros destacamos a novela Mar Paraguayo, lançada em 1992, que segundo o escritor foi um divisor de águas na sua trajetória como escritor (com prólogos de Néstor Perlongher e de Heloisa Buarque de Hollanda), teve recentemente sua primeira edição internacional, pela prestigiosa Intempérie Ediciones, de Santiago do Chile. Esse livro foi adaptado para o cinema por Nivaldo Lopes, no média-metragem de mesmo título, e está sendo traduzido, por Erin Moore, para a Oxford Press University.
Meu Tio Roseno, a Cavalo, foi finalista do Prêmio Jabuti de Romance – 2001 e escolhido como título obrigatório do Vestibular Unificado da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS.
Em 2004 publicou Amar-te a ti nem sei se com carícias, finalista do prêmio Zaffari e Bourbon de melhor romance publicado em língua portuguesa no biênio 2003/2004, concorrendo ao lado de José Saramago, Eduardo Agualusa, Chico Buarque, entre outros. Seu livro mais recente é Cachorros do Céu, com prefácio de Ivo Barroso.

(3) Rita Lenira realiza um belo estudo de alguns dos livros que Wilson Bueno dedica aos animais em Poéticas do presente limiares. BITTENCOURT, Rita Lenira de Freitas. Poéticas do presente limiares. Florianópolis, 2005. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Santa Catarina.

(4) BUENO, Wilson. Jardim Zoológico. São Paulo: Iluminuras, 1999.p.17.

(5) BUENO, Wilson. Jardim Zoológico. São Paulo: Iluminuras, 1999.p.17.

(6) idem p.27.

(7) idem, p.37.

(8) Do latim bestiariu, significa um livro com descrições e histórias de animais, reais ou imaginários, geralmente com ilustrações.