Arthur Valle: Pós-Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) e editor, junto com Camilla Dazzi, da 19&20 – primeira revista eletrônica dedicada exclusivamente ao estudo da arte brasileira do século XIX e início do XX (www.dezenovevinte.net).
O Museu Victor Meirelles expõe um dos mais singulares conjuntos de trabalhos do célebre pintor, filho da antiga Desterro. Se esses trabalhos não possuem o apelo mais imediato das famosas telas históricas de Meirelles, oferecem, em contrapartida, uma oportunidade ímpar para conhecer os meandros de seu processo criativo e de sua formação como pintor. Nesse sentido, é particularmente digno de nota um quadro de dimensões reduzidas, intitulado Esboço de paisagem para Passagem de Humaitá: barranco, que traz a datação de c. 1868-72.
Nele, contra um céu claro, recorta-se o perfil de uma vegetação variada, com destaque para um conjunto compacto de árvores, à esquerda da composição. O barranco de terra vermelha, que empresta o nome à obra, se precipita, em uma diagonal ascendente, do primeiro plano, embaixo à esquerda, para o espaço mais recuado no centro. No esboço, procurar-se-ia em vão a precisão linear que caracteriza outros trabalhos de Meirelles: nele, ao contrário, predominam manchas que se integram sutilmente de tintas. A fatura espontânea do trabalho surpreende, inclusive aqueles familiarizados com a produção paisagística de Meirelles: com efeito, mesmo os estudos preparatórios para os Panoramas, que pintou posteriormente guardam um acabamento mais refinado, bastante distante da relativa informalidade ostentada em Barranco.
Se o título não nos induzisse a isso, talvez não estabelecêssemos a relação entre esse pequeno quadro e a versão definitiva da Passagem do Humaitá, que Meirelles exibiu pela primeira vez na Exposição Geral de Belas Artes de 1872, e que hoje faz parte, como peça de destaque, do acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Isso nos leva a cogitar que talvez Barranco tenha sido pintado quando Meirelles tinha em mente uma concepção bem diversa da Passagem de Humaitá hoje abrigada na instituição carioca. Nesse sentido, por exemplo, é interessante notar que o Museu Victor Meirelles abriga um Estudo para a Passagem do Humaitá, igualmente datado de c. 1868-72. Nele, à direita, recuada no horizonte, se encontra representada uma nesga de terra, que é perfeitamente análoga à paisagem mostrada em Barranco. Nesse Estudo para a Passagem de Humaitá, uma embarcação a vapor, levando um grupo de militares brasileiros fardados, se encontra cercada por jangadas repletas de paraguaios seminus; o combate, claramente desfavorável para os brasileiros, parece já ter sido deflagrado. Se tal versão tivesse sido levada a cabo, o resultado seria uma exposição mais convencional da Passagem do Humaitá, centrada em personagens perfeitamente caracterizados e no seu enfrentamento dramático, ao contrário do, para usar as palavras de Maraliz de Castro Vieira Christo, “pertubador combate distante” da versão que chegou até nós, onde quase nada se pode discernir do heroísmo ou da dor humana, nem sequer da própria paisagem natural.
Encarada por um viés diverso, Esboço de paisagem para Passagem de Humaitá: barranco nos ajuda a refletir sobre os contatos com a cultura figurativa europeia que ajudaram a modelar a produção de Victor Meirelles. Poder-se-ia, por exemplo, fazer remontar o aspecto particular desse esboço às vivências de Meirelles na Roma de meados do Oitocentos. A esse respeito, Jorge Coli chamou a atenção para os vínculos que o catarinense ali estabeleceu com a estética dos Puristas e Nazarenos. No manejo sutil da atmosfera e da luz patentes no esboço aqui analisado, parece se evidenciar o contato de Meirelles com as obras de Tommaso Minardi ou o com a produção paisagística de artistas originários de países de língua alemã como Joseph Anton Koch ou Franz Horny, ligados ao círculo dos chamados Deutsch-Römer (literalmente, os “Alemães-Romanos”). Mas Barranco parece evocar, igualmente, o trabalho de uma geração mais nova de Deutsch-Römer, que se estabeleceu em Roma justamente nos anos 1850, quando Meirelles para lá se dirigiu como pensionista da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Pintores como o alemão Anselm Feuerbach ou o suiço Arnold Böcklin percorriam então as mesmas ruas da Cidade Eterna que o artista catarinense e é plausível que um conjunto semelhante de experiências seja o responsável pelos elementos em comum que Barranco guarda com, por exemplo, as paisagens melancólicas de Böcklin – assim como os silvícolas das telas históricas de Meirelles, como a Primeira Missa no Brasil, parecem guardar algo do caráter primevo das criaturas mitológicas que povoam diversas telas do artista suíço.
Por nos induzir a refletir de maneira diferenciada sobre a produção de um dos nossos mais importantes pintores, obras como Esboço de paisagem para Passagem de Humaitá: Barranco, assim como diversas outras do Museu Victor Meirelles, fazem da visita ao acervo dessa instituição uma experiência insubstituível.
Referência Bibliográfica:
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Victor Meirelles, Pedro Américo e Henrique Bernardelli: outras leituras. In: Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 39, p. 167-188, 2007.
COLI, Jorge. A batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relações com a pintura internacional. Tese de Livre Docência. Campinas: Unicamp, 1997.
I “Deutsch-Römer”: Il mito dell’Italia negli artisti tedeschi, 1850-1900. Milano: Arnoldo Mondadori Editore S.p.A.; Roma: De Luca Edizioni d’Arte S.p.A, 1988.