Victor da Rosa, ensaísta e bacharelando em Letras pela UFSC.
Outros de seus textos podem ser lidos em [ www.literaturamenor.blogger.com.br ].
ao que resta
1 –
Existe um efeito de discrição e mesmo de fragilidade que aparece nesse primeiro contato dos olhos com a poesia que Leonilson nos oferece – e que se intensifica para se tornar experiência trágica na medida em que a obra-vida do artista nos toca. Uma pequena linha de bordado sobre o pano branco pode ter a dimensão de um corte na própria pele, uma cicatriz – “34 com scars” (1991); e o que parece inofensivo pode, no mesmo ponto, ser também passional. Então nos damos conta de que, junto da delicadeza que compõe os desenhos e as palavras do artista, também figura a dramatização de uma falta, um desejo impossível. Nos damos conta da delicadeza do ato de bordar, sua minúcia, mas também da dor até silenciosa que lhe é implícita – o gesto de atravessar uma superfície mínima. Ou talvez Leonilson esteja na distância entre estes dois pontos.
2 –
Se os desenhos e bordados de Leonilson têm forte conotação autobiográfica – “Meu trabalho é uma questão pessoal” – eles não aparecem enquanto espelho de si, mito de Narciso, mas enquanto desejo mesmo de tornar-se outro – a busca de Leonilson parece sempre a de querer tocar nesse limite, nesse ponto, percorrer essa distância. Sua questão, assim parece, não é representar a si – mas ser o próprio trabalho. Penso em seu bordado “El puerto” (1992), em que o artista esconde a superfície refletora de um pequeno espelho colocando um pano em sua frente, e deixando aparecer somente a moldura alaranjada. No pano, alguns números e palavras são bordados, com letras quase descuidadas, que apontam para a própria imperfeição – seu nome abreviado como marca de intimidade, “Leo”, sua idade, peso e altura (é possível perceber que Leonilson já estava bastante magro). O pano, ainda, funciona como espécie de cortina que impossibilita o olhar a si – “Vou te dizer uma coisa: eu não levanto a cortininha. Dificilmente. Fico contente que o espelho seja coberto”, diz o artista na entrevista concedida a Lisette Lagnado, publicada no livro “São tantas as verdades”.
É preciso que o espelho deixe de refletir seu rosto para que Leonilson possa criar outro de si que não seja o mesmo – entre o próprio rosto que se apaga e o bordado que se desenha existe uma diferença, uma dobra. O artista produz o traço e, ao mesmo tempo, é produzido nele – num retorno infinito ao outro. Assim, não se trata apenas de representar o próprio corpo, mas de provocar a sua dramatização, retirar dele um resto trágico. Dessa maneira, quase sempre as palavras que Leonilson tece não possuem referência em algum lugar exterior, nem empregos e funções – sua experiência com a linguagem é da ordem de uma encenação. Elas apenas põem o sujeito numa cena, lamentam, sobretudo vacilam, e permanecem nesse meio do caminho. A elas, não há resposta possível. A proximidade entre Leonilson e seu trabalho é tal que passa a ser impossível criar qualquer representação dele. E o traço, numa relação reversível com o artista, passa a ser o corpo mesmo da obra.
3 –
Nos últimos trabalhos de Leonilson, principalmente, existe certo cansaço no gesto. Tudo vai ficando menor e inacabado. O branco ao redor vai ganhando espaço, potência, e o desenho quase desaparece no meio de palavras não-ditas; figuras vão ficando pela metade, como o pequeno homem de “O Templo” (1993), que não tem os pés nem as mãos desenhadas; a letra do artista, por fim, às vezes caprichada, se torna garrancho – como é possível notar através do texto de Bárbara Gancia que abre o livro “Use, é lindo, eu garanto”: “(…) Léo continuou a mandar suas ilustrações com a regularidade de sempre. Lembro da última, quando ele já estava hospitalizado. Num esforço descomunal, que me foi relatado por quem presenciou a cena, Leonilson segurou o bloco de desenho e produziu um garrancho sobre a folha. Não publiquei. Guardei o ‘não-desenho’ por algum tempo e depois o descartei. Era triste demais ter de conviver com ele”. É como se o próprio corpo da obra estivesse também sofrendo os abalos do padecimento.
Leonilson não esconde seu gesto, o corpo que o constitui, enfim, o próprio movimento do erro e da imperfeição que cria o trabalho – “(…) o negócio da mão é o prazer de dar o ponto, de errar”, diz o artista. Creio que nem fosse preciso saber da cena do hospital para perceber que aquele garrancho era a letra de um cansaço, a cena de um corpo limitado. Nos versos da poeta Virna Teixeira, o artista tem as mãos cansadas: “a costurar cada / fio / mãos trêmulas”. No entanto, na medida em que Leonilson vai ficando mais fraco, na medida em que suas mãos erram, parece que o trabalho vai ganhando ainda mais força. O corpo do artista, sua obra, tem alguma relação com aquilo que dele resta, as marcas que ficam como dispêndio – o erotismo, o cansaço. Assim, seu trabalho pode ser tocado – e não lido, pois não há enigmas nem decifrações a fazer – como uma “antologia de vestígios”.
***
Seu bordado “El Desierto” (1991), como um diário íntimo, reclama da solidão de si, dramatiza uma falta. Pois se o deserto pode ser definido como lugar sem paredes, ele pode ser, ainda assim, sufocante, também uma clausura, como escreve Ricardo Resende em seu texto sobre a exposição. O deserto é, sobretudo, um lugar de tensão entre o desejo de dizer, revelar, e a impossibilidade de ser escutado, o cheio e o vazio, o sim e o não – a afirmação na obra e a negação na vida: “Para que o deserto? É todo cinza. Na obra, você briga, é um jogo de ansiedades. Eu me sentia um deserto mesmo, eu estava um deserto. Eu não tinha nada”. Leonilson toca o paradoxo, pois oferecer a si – “Voilá mon coeur” – é, ao mesmo tempo, insuportável e necessário; dolorido, mas uma maneira de não morrer, de viver os restos da vida – não seria este um discurso romântico por definição?
4 –
(…) como se, da escritura, ato erótico desgastante, restasse o cansaço amoroso:
essa roupa caída, atirada a um canto da folha.
Roland Barthes.
A última exposição que Leonilson realizou em vida, na Capela do Morumbi, São Paulo, em 1993, foi composta por bordados em roupas claras de tecido fino que, penduradas em cabides e cadeiras, apontam para a presença de um corpo quase desmaterializado. Assim, anota Lisette Lagnado: “Como Eva Hesse, Leonilson estava impelido a buscar um material que fosse o suporte ideal para abordar a idéia de desmaterialização do corpo. Nesse sentido, a transparência de seus panos equivale ao látex, à gaze e fibra de vidro de Hesse”. A idéia da religiosidade, recorrente na obra de Leonilson, figura não somente pela apropriação do espaço da Capela, mas também por uma visualidade sutil que evidencia esse corpo etéreo.
No entanto, ao mesmo tempo, penso também na figuração de um erotismo nessas roupas. O cansaço das mangas que caem, escorrem pela cadeira; as palavras “Los delicias”, bordadas em uma das camisas; as roupas costuradas uma na outra, como se fossem a mesma, estivessem juntas; enfim, o conceito mesmo da roupa usada e deteriorada pelo próprio artista; tudo insinuando um gesto erótico ausente, anterior – a sedução se constitui justamente pela falta. Dessa maneira, Leonilson é sagrado e humano, sendo possível, nesse sentido, tocar também numa idéia de “profanação”, nos termos de Giorgio Agamben. Para o filósofo italiano, a profanação se constitui justamente com o sagrado devolvido ao uso humano: “A passagem do sagrado para o profano pode acontecer também através de um uso (ou melhor, de um re-uso) totalmente incongruente do sagrado”. Em Leonilson, “a vontade religiosa” não é subtraída de todas as outras vontades – pelo contrário, é tensionada com elas, colocada ao lado do erotismo, do cansaço, do dispêndio. Aqui, não há cesura, segregação, mas acúmulo e contágio. Daí a potência desse corpo ao mesmo tempo ausente e presente, etéreo e concreto, erótico e religioso. Enfim, absolutamente ambíguo e paradoxal.
5 –
A morte de Leonilson, dessa maneira, como a de um herói romântico, foi sua última obra – talvez o tensionamento maior com a própria vida. A doença, também adquirida pelo contágio, foi a medida de sua mortalidade: o fim radical do próprio corpo – que já desaparecia aos poucos. “Sua morte é subjetiva”, ainda diz Ricardo Resende. Depois de tudo, o artista se volta ao seu silêncio definitivo. Nem mais uma palavra. A morte, como um ponto final, a metáfora mais bonita. Aqui, não há mais diferenças.
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Texto originalmente publicado no Caderno10, do jornal A Notícia, no dia 06 de outubro de 2006 e no site Net Processo www.netprocesso.art.br