Referência:
texto de apresentação da exposição “deserto”,
realizada no Museu Victor Meirelles e publicado no folder da mostra.
Atualmente, enquanto escrevia vários e pequenos textos, lia como exercício de atualização, o livro inspirador do tema da Bienal de São Paulo de 2006, “Como viver junto”, de autoria do professor de semiologia francês Roland Barthes.
Conforme avançava em suas páginas, me entusiasmava sua atualidade e as inúmeras possibilidades de se pensar artistas e a arte contemporânea pelo viés simples do seu texto. A influência do seu pensamento o faz, portanto, fundamental para a reflexão da complexa sociedade contemporânea e seus desvios.
Desta forma, não poderia deixar de pensar este texto para “comentar” as escolhas de trabalhos do artista plástico Leonilson, feitas para esta exposição no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis, que não fosse por este viés:
Viver só viver com.
Leonilson, como poucos artistas, deixou aflorar os seus sentimentos, dos mais íntimos, em sua obra. Para alguns e para o próprio artista, era se expor demais. Voilá mon coeur. Um claro desejo de fazer parte de alguma coisa ou mesmo para apenas chamar a atenção do outro para sua existência. Uma trajetória artística cheia de dramaticidade que parecia se dar na ambigüidade do como viver só, do como viver com. Ou a procura angustiante pelo outro. De relacionar-se com. Este parece ter sido um dos assuntos que o pertubava em todo o percurso de sua produção.
Ninguém, e esta é a pura verdade, quer viver só. Por isso vivemos na companhia de alguém ou estamos sempre à procura do outro. O um, o dois. O um e o dois. O dois em um. O desejo do um, o desejo do dois. Quero viver só, quero viver com. Este outro é sempre idealizado, quase impossível. Um princípe como nos contos de fadas?
Estas dúvidas estão presentes ao se observar a obra do cearense José Leonilson. Dilemas. Desejo da escolha de viver só ou de viver com, dentro de uma vida comunitária ou social. O reconhecimento. E vamos pelo simbólico para pensarmos sua obra e ter a palavra deserto como um de seus significantes. O lugar deste encontro ou desencontro. “Viver-junto: talvez somente para enfrentar juntos a tristeza do anoitecer. Sermos estrangeiros é inevitável, necessário, exceto quando a noite cai.”
O deserto definido como um lugar sem paredes, mas ainda de clausura, segundo o próprio Barthes. E ele ainda o definie como um lugar “estéril, demoníaco”, quente e que se perde na linha do horizonte que tremula no infinito em meio às ondas de calor que brotam do chão arenoso e escaldante. Irregular, movediço, inóspito. Um lugar não lugar “apropriado” para eremitas, solitários e os corajosos desiludidos. Um lugar para não se viver, a bem da verdade.
A clausura do deserto de Leonilson. O deserto como clausura de um ser apaixonado. O deserto em que habita o um o dois, o eu e o outro. Um ambiente sem limites, seco, pobre de vegetação, muitas vezes arenoso e feito de grandes dunas de areia em que apenas o vento habita. Viver junto para não terminar só.
Tema recorrente que foi bordado em dois importantes trabalhos do artista, El Desierto e Deserto. Um deles está presente nesta mostra. A palavra ali é usada como desenho de uma imagem não projetada, não visualizada. O deserto se dá apenas no significante da palavra e na subjetividade da cor. A palavra entra neste trababalho não apenas no seu sentido etimológico, mas como construtora da forma ou campo, sugestionada pela cor.
Cor, textura e palavra = confinamento do indivíduo dentro do chassi que, por sua vez, simboliza a fronteira onde se dá o deserto de Leonilson. O deserto era o espaço simbólico sufocante em que vivia, enquanto realizava o próprio trabalho em 1991? Talvez.
O bordado Deserto, de 1991, é um pedaço de tecido fino e translúcido, na cor de um forte alaranjado, que traduz um mundo “irrealizado”. Uma recusa da “realidade em nome de uma fantasia” em que se “realiza as peripécias e as utopias do amor”. Do amor romântico, melancólico e tedioso. Melancólico pela impossibilidade de se amar ou ser amado. Tedioso na eterna busca, que nunca finda ou que finda ao deparar-se com o fim, a morte anuciada. Realidade? Não. A morte em Leonilson é subjetiva. E não devemos relativizá-la ou nos espantarmos com ela e a transformar em tabu em sua obra. Pois a cada dia, invariavelmente, todos morremos um pouco. Isto é viver.
O anúncio da morte em Leonilson também pode ser uma fantasia existencialista de um momento lacônico, de puro tédio para com a humanidade. Há alguns trabalhos que nada mais são do que um “deixar-se ir” enfadado. Ou a coragem nascida do desespero (segundo o filósofo Sêneca).
Uma das mais instigantes peculiaridades de sua obra é a predominância, em determinado momento, do desenho como fazer artístico. A mostra em Florianópolis, a primeira do artista no estado, privilegia a linguagm em uma seleção de cerca de 30 trabalhos que “dialogam” entre si. Alguns explicitam o que aqui discorri, o desejo de viver com, mais do que viver só.
Ricardo Resende
Fortaleza, setembro de 2006.