INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

n.4 – Entrevista

Revista Eletrônica um ponto e outro nº 04 – Fabiana Wielewicki

Revista do programa de exposições do Museu Victor Meirelles

Entrevista

Busca inalcançável
Néri Pedroso

O inalcançável e a artimanha são matérias-primas da artista Fabiana Wielewicki na exposição “2ª Natureza”, que abre no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis (SC), no dia 25 de abril. Na construção desta série de sete trabalhos, aparece o plástico como um novo elemento. Para o pensador francês Roland Barthes, que situa o milagre sempre como uma conversão brusca da natureza, trata-se de “material milagroso”. “O plástico é, em suma, um espetáculo a decifrar: o próprio espetáculo dos seus resultados”, escreve o intelectual em “Mitologias”. Carregados de enigmas, os trabalhos de Fabiana Wielewicki estabelecem relações entre o tempo e o espaço, o natural e o artificial, levantando reflexões sobre a luz, a colagem, as apropriações, o senso comum, a ambigüidade, o público e o privado. Trata-se de uma fotografia que constrói lugares, recantos – assim eventualmente nominados pela artista. A ironia aparece como marca dominante num trabalho que se abre para múltiplas leituras. O olhar construído destas paisagens e outras questões são analisados por Fabiana nesta conversa exclusiva para as revistas eletrônicas “Net Processo” e “um ponto e outro”, grupo vinculado ao Museu Victor Meirelles, que conta com sua a participação.

Um ponto e outro – Proponho um jogo. Faz de conta que sou um espectador leigo, vindo ao museu e vendo seu trabalho pela primeira vez. O que você me diria sobre a mostra “2ª Natureza”?

Fabiana Wielewicki – Eu diria que é uma investigação que inicia numa paisagem de interior, de dentro de um apartamento. Há uma certa idealização desta paisagem marinha, que é o contexto de Florianópolis. Tem sempre um jogo, algo que se arranja na superfície da fotografia. O quadro de uma paisagem do senso comum, que é bela, que acredito que seja bela, e uma paisagem do interior do apartamento, um panorama de escritório, um cotidiano que não coincide com essa idealização do morar numa ilha. Seria mais ou menos isso. Há também uma outra série de trabalhos que chamo de Recantos. Levo para a praia enfeites, uma vegetação de plástico, e deixo o mar em segundo plano. A hierarquia que existe na fotografia de primeiro e segundo planos, o artificial, o banal, o feio, o tosco ficam em primeiro plano e o mar, quase como um pano de fundo, atrás, desfocado. Cria-se um jogo entre o que é o natural e o artificial.

Um ponto e outro – E se o espectador fizer a fatídica pergunta: afinal, o que você quer dizer com isso?

Fabiana – Queria falar um pouco de coisas que são inconciliáveis, o atrito entre o que a gente idealiza e com o que realmente convive. É o senso comum, mas ao mesmo tempo todos nós somos feitos deste senso comum. É o belo do senso comum. Temos a mania de achar que o belo é essa paisagem bonita, é o pôr-do-sol; o feio é a cidade, o cimento. Em certa medida, nesta superfície, essas coisas não têm hierarquia, fica tudo uma segunda paisagem. A “2ª Natureza” é irônica neste sentido, porque aquilo que se considera menor é fonte de segunda natureza, o plástico ou a paisagem estampada na capinha de álbum oferecido por laboratórios fotográficos.

Um ponto e outro – O pensamento, o olhar do público está presente no programa? Você pensa no espectador? Qual o lugar do público dentro do trabalho?

Fabiana – Eu usava mais a idéia de programa para os trabalhos anteriores, quando tinha uma ação, um movimento. Com o vídeo junto, havia uma corrida até a pose, tinha esse pré, o programa aparecia, não era um dado que ficava só nos bastidores do processo. Agora, ele ainda existe, porque há toda uma encenação para construir essa segunda paisagem que podemos chamar de uma terceira. Tem uma paisagem dentro da paisagem e é aquela noção de arranjo dentro da fotografia. Tudo está muito encenado e cada coisinha colocada no seu lugar. Então, aquilo é uma mentira. Algo ali soa falso. Se soa falso, alguém criou a atmosfera artificial. Tenho essa preocupação sim, é muito importante a relação com o público. É chato falar em níveis de leitura, mas acho que em algum momento o trabalho perturba ou instiga. Uma experiência bem legal ocorreu quando fui montar o portifólio na loja de xerox. Cheguei mais cedo do que o combinado e os trabalhos estavam no monitor. Os três funcionários tentavam decodificar como aquela cena tinha sido feita. Hoje vamos muito pela lógica do Photoshop e aquilo ali tinha sombra, uma estranheza que não é a do Photoshop. Eles, ao me perceberem, disfarçaram, “ah, é dela, é dela, é da moça ali”. Aquilo foi muito legal, porque o trabalho não tinha sido exposto ainda e já tinha causado a estranheza que eu gostaria que causasse. É difícil também a gente projetar – eu queria que o trabalho fosse por esse caminho -, mas, enfim, ele perturbou ali.

Um ponto e outro – É um filho livre, o trabalho?

Fabiana – Não tem controle. E a leitura acrescida pelo público pode ser um acento na produção, algo que não pesou na mão naquele trabalho, mas no próximo…Às vezes, o público indica o caminho, dá um fio de novelo que continua no próximo. Isso é bem importante.

Um ponto e outro – A recomposição temporal e espacial do olhar sobre a paisagem são buscas em seu trabalho artístico. O que mudou em “2ª Natureza”? Como novidade, surge um novo elemento, o plástico. Há alguma outra mudança?

Fabiana – Eu estava tentando resolver a relação com o tempo com o vídeo, mas isso começou a incomodar porque queria ajustar tudo na superfície da fotografia, onde o tempo fica muito inerte. Não se sabe naquela cena quanto tempo aquela pessoa ficou contemplando aquela paisagem de papel ou aquela série do Recanto. O lugar, que lugar é aquele? Ele não existe, porque é o mar aberto e uma plantinha na lateral do enquadramento. O Recanto, a idéia que temos de recanto, de aconchego é um lugar inventado, não existe. O plástico é novo, surgiu daqueles trabalhos da “2ª Natureza” do oitavo andar, com pôster de paisagens. Em casa, eu tinha essa paisagem urbana a partir da introdução da figura de uma “paisagem natural”, eu trouxe algo de natural, mesmo sendo falso. Fui, então, passar uma temporada na praia e, num impulso, pensei que deveria levar algo artificial para a paisagem natural. Como vou me relacionar com ela, sem criar esse jogo do falso? Comprei, então, essas plantinhas numa loja de 1,99. Eu estava viajando, em Rio do Sul vi as plantinhas, fiquei com elas na cabeça, voltei lá, consegui comprar, as levei na mala. Mais tarde, indo à praia, levei uma sacola com essas plantas, pensando em interagir com o natural, eu estava pensando muito na imagem como anteparo. Coloco a paisagem natural como anteparo para a paisagem urbana e sentia-me desprotegida diante do mar, queria um anteparo, que acabou sendo o artificial. Logo, pensei no plástico, na relação da cor, porque aquele verde é vivo para a fotografia. Inicialmente, não pensei no mar, mas sim em levar o plástico para dentro de casa, mas, ao fazer uns arranjos com os prédios e as plantas, não funcionou. Esse plástico traz a memória do natural, a promessa do natural, mas ele é muito primário. A gente vê a forma do corte, do plástico das folhas, mas ele traz um pouco da memória impotente do natural. Era um pouco isso que eu queria.

Um ponto e outro – Quais os conceitos e operações que desencadeiam o seu trabalho artístico?

Fabiana – Ainda não consegui descobrir o motivo, mas sempre tem uma relação com o espaço de convívio. Se convivo com o espaço, se vou numa segunda vez, já começo a pensar um trabalho para aquele lugar. Pode ser a casa de um amigo, a minha, o quarto de um hotel, enfim, é um lugar que consigo visitar mais de uma vez. Tem sempre aquele primeiro olhar, eu penso – “poxa, isso dá para um trabalho” – surge a vontade, aquilo fica ecoando na cabeça e já tento transformar em fotografia. O elevador de um prédio comercial, do contador que visito, por exemplo, vejo aquela janela e aquilo causa algo, me instiga de alguma maneira. Penso algo para fazer ali naquela situação. É sempre uma relação com o espaço, com o local, uma tentativa de cartografar ou tentar provocar, estabilizar ou desestabilizar aquilo. Num segundo momento, vou para o espaço e já penso o trabalho ali. Às vezes dá certo, às vezes não, mas tem sempre uma relação de convívio.

Um ponto e outro – O pai, conta você, tinha mania de dar máquina de fotografia para as filhas. Ele adora fotografia. De onde e quando surge o interesse pela fotografia e o desejo de estabelecer relações entre ela e a paisagem urbana?

Fabiana – Meu pai sempre gostou muito de fotografia, comprava muitos livros de fotografia, fazia uns ensaios comigo, com a minha mãe. Ao mesmo tempo em que ele me munia de equipamentos para produzir imagens, eu era também modelo. A relação de ser sempre alvo, depois na adolescência, deixava-me desconfortável. Eu tinha os meus alvos, eu tenho as minhas fotos, guardei as que produzi na infância, mas o fato de ser alvo me incomodava. Quando fui fazer artes plásticas, no curso de pintura e gravura, pensei que pintaria, desenharia, faria gravuras. Existia ali um certo refúgio, eu tentava fugir um pouco da figura do pai na fotografia. Lembro que, no comecinho do curso, até falei para o professor que iria deixar a disciplina de fotografia para o final, porque eu gostava muito e porque pensava que no final, depois de passar pela pintura, desenho e gravura, teria mais consciência do meu processo. O professor deve ter achado que eu não queria fazer, que falava aquilo para fugir da disciplina. E foi bem importante a minha decisão, porque consegui ver o que estava fazendo com a fotografia, que sempre era mais forte para os meus trabalhos. Eu conseguia me expressar melhor na fotografia do que no desenho e na pintura.

Um ponto e ponto – Você, então, assume a fotografia?

Fabiana – Sim, como estava trabalhando com desenho e objeto, comecei a inserir fotografia nestes objetos, depois fazer montagens. Até que o desenho, a pintura e o objeto ficam para trás, a fotografia ganha autonomia, continua sozinha, mas sempre, desde a época dos desenhos, tinha uma relação com a paisagem.

Um ponto e outro – Modesto Wielewicki, seu pai, era fotógrafo ou fazia por hobby?

Fabiana – Ele tem uma relação com a fotografia, mandava para concursos, ganhou alguns prêmios. Era professor de inglês, mas gostava muito de fotografia, estava sempre fotografando. Fez algumas viagens documentando o Brasil, alguns trabalhos para a Editora Três, a revista “Quatro Rodas” e outros editoriais, como o livro “Brasil Aventura – Odisséia” (Editora Terra Virgem).

Um ponto e outro – Na questão de ser o alvo do pai e o seus auto-retratos de costas. Dá para estabelecer alguma relação neste sentido?

Fabiana – Sim. Eu não tinha pensado nisto, mas, agora, sim. Os primeiros auto-retratos eram conceituais, tinha a idéia de alguém ali, mas essa pessoa não aparecia. Depois começou a aparecer de costas, depois com uma luz muito escura que não dava para reconhecer. Não era um auto-retrato de identidade, eu não era reconhecida, não ficava evidente, podia ser outra pessoa ali. Para mim, primeiro soava como uma questão prática, de facilitar um pouco a coisa, da pose, de fazer mil vezes aquela foto, não chatear ninguém. Ao mesmo tempo, no período entre 2003 e 2005, já entra outra questão que é o produtor da imagem sendo o modelo, tem uma relação daquele que busca a auto-imagem, mas não alcança. Na série “Backlight: 36 auto-retratos”, o trabalho que corre atrás de uma imagem; no “Auto-retrato na torre”, tento buscar uma imagem minha que não alcanço. É algo por aí. E agora tem uma coisa mais construída, mais poética, que é aquela figura. Sou o modelo, não aparece o meu rosto, mas tem uma brincadeira com a figura do artista, que ilude, com aquele tipo de imagem ingênua, o belo do senso comum. É a relação do modelo que volta, só que não existe muito confronto, o olhar de frente para a câmara.

Um ponto e outro – Ocorre uma acomodação com relação à situação de incômodo…

Fabiana – Sim. É esse olhar da câmara que o Barthes fala “antes do click eu já me metamorfoseio em imagem” Desconforta-me virar objeto antes do click e aí eu consigo fugir um pouco disto, consigo construir, sem encarar.

Um ponto e outro – Você teve de sair da Ilha de Santa Catarina para tomar consciência de que vivia numa ilha. De que forma essa “descoberta” mexe no seu trabalho?

Fabiana – Mexe bastante, porque sempre trabalhei com paisagem urbana, fazia montagens com edifícios, fotomontagens. A mudança ocorre a partir do momento que eu saio daqui, a partir daquela exposição “Os Segredos da Boa Fotografia”, que era um pôster de uma paisagem marinha na Beira-mar Norte, com montanha e o mar, na qual pensei esse tópico do senso comum que é a fotografia de paisagem. A mostra reunia clichês na fotografia, a imagem da Beira-mar é um clichê, mas foi ali que eu me abracei, a partir deste quadro, deste pôster, que mais tarde levei para Porto Alegre, começou a surgir toda a minha relação com o mar à minha volta. Em 2005, fiz o vídeo “Auto-retrato em ambiente com paisagem”. A partir do pôster e da minha volta para Florianópolis comecei a trabalhar a idéia da ilha, da relação com o mar, uma tentativa ingênua de aproximação, que eu nunca alcanço, nunca consigo estar perto do mar. Tem um lado ingênuo aí…

Um do ponto e outro – O que é predominante no seu trabalho?

Fabiana – Predominante é essa idéia de construir um cenário, uma situação ou um arranjo para ser fotografado, um cenário que não coincide com o “mundo real”, não coincide com isso, é sempre uma situação que desestabiliza aquela paisagem. Tem sempre uma relação minha com a paisagem, porque o olhar é construído, ele depende do indivíduo, é culturalmente construído, então ele depende de mim para ser um olhar. É sempre o meu olhar para essa paisagem e tentativa de criar artimanhas para desestabilizar essa paisagem.

Um ponto e outro – A relação entre tempo e espaço. Ironia, apropriação, contemplação. O público e o privado. A pesquisa da luz. Oposição entre o natural e o artificial. A colagem. Há outras conexões e desdobramentos não apontados aqui?

Fabiana – Está tudo aí. Tem a questão, que tu colocou antes, que é a figura relacionada com essa paisagem, existe alguém ali, alguém que está sempre de costas. Como está de costas, cria um jogo com o espectador. O olhar que dá atenção àquele pôster de pôr-de-sol funciona como uma seta, a figura dá importância para o pôster e não para o entorno de edifícios. É meio que um jogo do espectador também pensar porque está sendo dada essa importância, é o olhar como seta.

Um ponto e outro – A ironia é a sua principal ferramenta crítica ou há outras? Como você explica a ironia no trabalho? Como ela vem?

Fabiana – Eu tento fugir um pouco da ironia, mas ela é uma recorrência. Se não consigo bater de frente com aquilo, se não consigo resolver algo no trabalho, se acho aquele pôr-do-sol senso comum, mas ainda assim eu o acho bonito, então a ironia resolve esse problema.

Um ponto e outro – Você é uma pessoa irônica ou é só uma ferramenta utilizada para o trabalho?

Fabiana – Acho que sou irônica, vejo a vida com muita ironia, costumo rir das tragédias, das coisas que acontecem comigo. Meus amigos dizem que eu conto de uma maneira super prática, com humor negro. Aquela história do tempo, depois que passou, a gente transforma aquilo, ri do que deu errado, olha a desgraça. Costumo rir muito das coisas erradas que acontecem comigo. Normalmente para fazer algo tenho de fazer três vezes para aquilo dar certo, então já incorporei, é uma maneira de viver bem diante das pequenas tragédias da vida. Eu rio bastante neste sentido, faz parte de mim e isso vai para o trabalho. De repente, tenho um paredão de edifícios que eu não gosto; coloco, então, um pôr-do-sol, que cria um jogo.

Um ponto e outro – Imagem-ato, conceito do pensador Philippe Dubois, está presente no trabalho, assim como a questão do auto-retrato. Como analisa a questão?

Fabiana – A idéia da imagem-ato surge com os vídeos, nesta brincadeira do auto-retrato. Está relacionada com o auto-retrato, porque para produzir a foto eu preciso estar nas duas situações, preciso apertar o gatilho e correr para posar. E o que acontece neste intervalo? O vídeo resolveu a questão em alguns trabalhos, eu apertava o botão e corria. Onde está o ato? Está no apertar o gatilho ou no posar? Ou está neste intervalo? Agora, na série “2ª Natureza” isso ficou meio velado, porque não se sabe se tem alguém tirando esse retrato, se sou eu, não fica tão evidente.

Um ponto e outro – Que tipo de expectativa você tinha ao enviar a sua proposta para o Museu Victor Meirelles?

Fabiana – Tenho uma questão muito afetiva com o museu, pelo fato de sido a casa do Victor Meirelles. Tem também o museu no contexto de Florianópolis e o fato de achar que a equipe trabalha muito sério, eu respeito muito esse espaço. E eu nunca tinha feito uma individual nesse contexto, fiz em função do mestrado em 2005, mas naquele momento tinha de dar conta de uma produção relacionada à dissertação e me senti meio atrelada à questão acadêmica. No Museu Victor Meirelles pude pensar tudo, a sala, os espaços, os painéis, o convite, uma coisa muito carinhosa.

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