Alcídio Mafra de Souza
Rio de Janeiro, 24 de maio de 2002
Falar de Victor Meirelles de Lima é referir-se a um dos maiores criadores artísticos do país. O filho de imigrantes portugueses nasceu na rua do Açougue (depois rebatizada de Victor Meirelles em sua homenagem), na então Vila de Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis). A casa onde nasceu foi transformada no Museu Victor Meirelles, que neste ano de 2002 está comemorando cinqüenta anos de existência. Em janeiro de 1950 a edificação foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a fim de que nela fosse instalado o acervo do Museu.
Quem foi afinal esse catarinense que em determinado momento de sua existência não pisava na rua sem ser cumprimentado e o que representa no cenário da arte brasileira? Victor Meirelles foi menino pobre e seu verdadeiro mundo era a própria Desterro. Nascido em 1832, distraía-se na escola a criar bonecos e paisagens, a fim de fugir ao tédio das coisas que não lhe interessavam.No entanto, vinte e um anos depois, após haver cursado a Academia Imperial de Belas Artes, na qual ingressou aos quinze anos, desembarcava triunfalmente em Roma. No ano de 1861, pontificava em Paris, expondo no conceituado Salão da capital mundial da arte a tela Primeira Missa no Brasil, que recebeu muitos elogios.
De volta ao país de origem, pintou, entre dezenas de outras obras, Combate Naval do Riachuelo, Passagem do Humaitá, Batalha dos Guararapes e Moema. Entre 1861 e 1872, trabalhou com afinco e, apostolarmente, dedicou-se ao magistério, na mesma academia imperial que havia freqüentado. Conheceu o sucesso e o esquecimento. Viveu grandes momentos de glória e dias de dor e angústia, o que, na realidade, não era um privilégio, e sim fruto da própria condição humana. Não mais relampeava a alegria quando faleceu, em 1903. Tão pobre quanto saíra de sua cidade natal, logo ele que havia enriquecido a nação com tão celebradas obras de arte. E, por uma dessas ironias do destino, num domingo de carnaval… Glória de sua pequena cidade, nunca será demais repetir: Victor, de fato, um dos maiores nomes da arte nacional. Seus méritos e valor, também é bom salientar, nem sempre foram reconhecidos ou proclamados. É, entretanto, reconfortante reconhecer que sua cidade natal jamais o esqueceu, como também ele nunca deixou de lembrar sua pacata e bela terrinha. Por imposição da carreira e da vida artística, viveu muito tempo longe dela. No entanto, sempre a amou e embora a houvesse registrado muito pouco em suas obras, indiretamente mostrou-a na maioria de suas composições.
Trouxe-a sempre viva em sua memória, lembrança que aflora em quase toda sua obra pictórica, recriando-a em cenários outros que só os familiarizados ou nascidos na ilha, com seus belos aspectos, percebem. São cantos de boniteza, nunca vistos em outros lugares; nesgas de praia lambidas pelo mar ou pedaços de céu, onde esvoaçam os passarinhos.
Victor Meirelles talvez seja o pintor brasileiro mais popularizado, graças, principalmente, à visão do quadro Primeira Missa no Brasil, o qual, em virtude de processos modernos de reprodução, tornou seu nome familiar a toda nossa gente. Entretanto, tal vulgarização não retira da obra suas reais virtudes pictóricas, presentes em todos os trabalhos do artista. Se é verdade que em nenhum deles tenha alcançado a concepção do espaço absoluto, como vemos atingida por Rafael em A Ressurreição de Cristo e Escola de Atenas; a imponderabilidade da luz revelada por Rembrandt em Peregrinos em Emaús e Ronda Noturna, ou, ainda, a organização das massas obtida por Poussin em O Triunfo de Netuno e Bacanal, todas conquistas da mais alta pintura, também é verdade que Victor, inegavelmente, possuía dons de grande pintor: desenho esmerado, pincelada vigorosa, intuição de cor e ciência de composição. E, com eles, produziu notas vibrantes de lirismo, presentes em Primeira Missa no Brasil, e movimento dinâmico, como em Batalha dos Guararapes.
A formação acadêmico-eclética de Victor não lhe estancou a veia romântica e sentimental, porém suas grandes composições históricas revelam nítidas afinidades com a concepção de Delacroix no tratamento de seus assuntos. Consoantes à mesma concepção são os chamados quadros de gênero e é neles que Victor dá largas a seu sentimentalismo romântico. Moema é o exemplo perfeito dessa afirmação, pois entre o tratamento pictórico desse trabalho e sobretudo nos estudos para seus panoramas, não existem diferenças. Em Moema, o artista usa com maestria os artifícios técnicos da pintura, a fim de que os elementos constitutivos da obra suscitem o clima poético e irreal evocado pelo poema de Santa Rita Durão. Nas paisagens e sobretudo nos estudos para os panoramas, uma hipótese que não pode ser descartada: embora deles só restem os estudos, tudo leva a crer que o artista, já no fim de sua vida, esquecido e despojado do que merecia ter pelo muito que fizera pela cultura do país, iniciou o que se poderia chamar de “a última arrancada”, tentando com ela suplantar a crescente sofisticação da arte fotográfica. Daí a meticulosa preparação, os inúmeros estudos, a rigorosa técnica naturalística no recolhimento de dados visuais, as altas doses de emotividade e poesia, juntamente com sua jamais desmentida competência acadêmica. Encantamento pelo que vê e fidelidade ao que sente.
Quando Victor Meirelles executa os panoramas, sua já então destacada posição no cenário artístico nacional permite-lhe certas liberdades. Embora não descure do desenho neoclássico, imprime-lhe, no entanto, toda a luminosidade tropical. Revela o lirismo das coisas mais comezinhas, mais simples. Atento ao que o cerca, com certa dose de irônica doçura, como no estudo para Villegaignon, denuncia as contradições da vida humana. Trabalha poeticamente o trivial, transmutando-o no extraordinário. As cenas elaboradas qual pequenos contos não são banais nem piegas e se desenrolam em clima de permanente ternura, como resultado de seu profundo amor ao próximo.
Com os panoramas, Victor dá a impressão de mostrar mais a fugacidade da vida que a serenidade da tristeza. Nenhuma forma de atividade humana tem tanta importância quanto a das artes plásticas. São elas a mais eloqüente fonte da história, remontam a milênios. E é através da obra de arte que tomamos conhecimento da evolução humana, como ainda de suas alegrias e suas dores.
É lamentável que os poderes públicos da época não tivessem o mínimo de sensibilidade e consciência a respeito de tão grande obra, permitindo que ela se destruísse. Os panoramas de Victor Meirelles mostrariam para os pósteros um período de vida do Rio de Janeiro tal como a Comédia Humana ainda atualmente documenta a sociedade francesa da época. Autêntica res gesta, qual o Itinerário, de Pausanias, ou os textos de Heródoto ou Carlyle, os panoramas pretendiam motivar o povo para a manifestação plástico-criadora, e de certa forma colocariam seu autor na precedência de arte-educadores como Augusto Rodrigues e Abelardo Zaluar, entre outros, que sempre postularam por diretrizes educacionais voltadas para o despertar das potencialidades criativas inerentes a todo ser humano.
Como outros artistas de outras épocas, Victor Meirelles sempre acreditou que o homem não é um ser à parte da natureza, mas que com ela se relaciona e nela está inserido. Muito embora a ausência de limites entre o mundo interior e o exterior inúmeras vezes o tivesse feito oscilar qual pêndulo entre o ser e o não-ser.