Fundadores da Acap inspiram obras que dialogam entre passado e presente

“Movências…” ressignifica o legado dos oito idealizadores da associação criada há 50 anos, em exposição no Museu Victor Meirelles, o emblemático prédio histórico que foi moradia do artista catarinense preferido de Dom Pedro 2º

“Movências: Ressignificação dos Oito Fundadores da Acap: Eli Heil, Franklin Cascaes, Martinho de Haro, Max Moura, Ernesto Meyer Filho, Pedro Paulo Vecchietti, Rodrigo de Haro e Vera Sabino” é o nome da quinta exposição das seis programadas para esse ano promovida pela Acap (Associação Catarinense dos Artistas Plásticos) em comemoração aos seus 50 anos. A coletiva, que reunirá criações de 22 associados, estreia na quarta-feira, dia 19 de novembro de 2025, às 19h, no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis.

O espaço não poderia ser mais significativo para a arte catarinense neste momento festivo. Afinal, o museu, vinculado ao Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), do Ministério da Cultura, está instalado desde 1952 na casa onde o artista nasceu, tombada como patrimônio histórico e artístico nacional. Manezinho, Meirelles deixou um amplo acervo, em que se destaca a mais popular das telas brasileiras, a “Primeira Missa no Brasil”.

O museu, um espaço cultural de abordagem contemporânea, recebe agora um grupo de artistas que transita entre a arte moderna e contemporânea. Seguindo a ideia de homenagear o grupo que idealizou a Acap e a fundou em 1975, os associados criaram obras em que ressignificam o legado deixado por cada um deles, todos artistas de grande sucesso e que projetaram Santa Catarina no cenário nacional e internacional. Enquanto se inspiram nos fundadores, os expositores também imprimem sua marca e se mantêm unidos e dispostos a dar continuidade à história da associação que soma meio século.

O Olimpo da Ilha em aquarela

A celebrada Vera Sabino, 77 anos, única fundadora viva e em plena fase criativa, inspirou a aquarelista Gabriela Luft a criar “O Monte Olimpo da Ilha”. “Do diálogo entre a obra de Vera e minha pesquisa pessoal em aquarela, ressignifico o universo simbólico e colorido, transportando-o para um território mítico onde a antiga Desterro (atual Florianópolis) torna-se cenário e personagem”, explica Gabriela. A criação traz um panteão de 12 deusas que habitam a cidade — cada uma guardiã de um aspecto da alma da Ilha, no qual o Morro da Cruz ergue-se como o Olimpo.

Roberta Viotti também busca traços de Vera no mundo submerso em “Freguesia dos Peixes Manezinhos”. “Não tem só peixe não, tem bruxinha de cabelo cobra que mergulha só pra dar uma volta no Gordinho, já que a Sardinha anda de regime e não aparece mais na festa; tem sereia com complexo de Bela Adormecida e Olho de Peixe na segurança do festerê, onde não é permitida a entrada de humanos Xereletes, oops, xeretas”, sintetiza.

E por fim, fora da temporada, com as águas ainda transparentes e cheirosas, aparece a rainha Tainha,com sua beleza perolada. “Como sempre gostei de desenhar e pintar peixes, trouxe a bruxaria pro fundo do mar !”, conta Roberta.

O universo bruxólico de Franklin Cascaes

O universo bruxólico, também explorado pelo mestre Franklin Cascaes, inspirou Gavina a criar “Encarnação – Estudo para Alegoria”, que revisita as criaturas míticas. Boitatás, curupiras e outras presenças da mata surgem como guardiões da terra e do fogo, insurgindo-se contra a violência.

“Minha proposta é reencontrar Cascaes não como contador de histórias ou mitólogo, mas como artista cuja obra pode ser reinterpretada à luz do presente, em diálogo com os dilemas e forças do nosso tempo. Nesse encontro, faço da figura humana um suporte simbólico, um simulacro de sagrado que se manifesta nas camadas da imagem, nos vínculos entre arte, mito e território”, explica.

Almir Reis também apostou em Cascaes em “Mil e Uma Maravilhas Deus Criou Nesta Ilha”. Para ele, Cascaes descreveu e documentou como ninguém a cultura que se estabeleceu na Ilha a partir da imigração açoriana do século 18, com muitas práticas ainda presentes em todo o litoral catarinense, se revelando em atividades cotidianas e rituais.

E encontrou na pesca da tainha, objeto da primeira crônica publicada por Cascaes em 13 de junho de 1956, descrevendo a atividade no Pântano do Sul, o cenário perfeito para cena reproduzida em aquarela, grafite, água do mar e com muita liberdade poética. No rigoroso inverno de 2025, pescadores, moradores e turistas são registrados repetindo, mais uma vez, o fantástico ritual.

Eli Heil exalta a vida e as criaturas possíveis

Também fundadora da Acap, Eli Heil surge na releitura de Lilia, que mergulhou nos poemas da artista para criar “Matrizes da Criação”. “Escolhi pintar a Árvore da Vida, com seus galhos em direção ao céu, buscando luz e sentido, e o Mundo Ovo de Eli, um útero cósmico onde brotam criaturas e mundos possíveis. Neste trabalho apresento ambos e o questionamento, de onde viemos e para onde vamos?”, relata Lilia.

A herança de Vecchietti é reafirmada por cinco artistas

Presente em todas as exposições da Acap, o associado mais antigo e tesoureiro há 30 anos, Onildo Borba apresentará “Bromélia Interrogatória”. “Estudando as vinhetas do mestre tapeceiro Pedro Paulo Vecchietti, identifiquei a bromélia como um dos possíveis símbolos de inumeráveis explorações, retornando o trabalho estilizado da visão do artista para as formas originais da natureza em que o próprio deve ter se apaixonado e transferido para os trabalhos produzidos”, explica Borba, que usou técnica mista com acrílica e pirógrafo sobre carpete.

Vecchietti também inspirou Dulce Penna para criar “Entre o Fio e o Fogo – As Muitas Tramas da Vida”. A artista vê nas tapeçarias um território de memória. Do macramê passou à cerâmica e adotou placas de cerâmica preta em quase todas as suas obras, criando uma trama de contrastes com os fios. “Meu trabalho nasce, em parte, em diálogo com as tapeçarias de Vecchietti, que compreendeu o tecer como ato poético”, observa.

Da mesma forma, David Ronce traz “A Adversidade Educa o Redondo”, em que propõe ressignificar sensivelmente a linguagem gráfica de Vecchietti, expandindo seus gestos e fragmentos em uma cartografia poética que dialoga entre o desenho e a abstração. A composição sugere paisagens mentais e topografias simbólicas, onde o olhar percorre o espaço como quem revisita lembranças.

Ana da Nova lembra que desde a emblemática exposição da Cabrinha, em 1958, com o GAPF (Grupo dos Artistas Plásticos de Florianópolis), Vechietti se destacou como um pioneiro, explorando novas materialidades e elevando a tapeçaria além do ornamento. Inspirada por esse legado, ela mergulhou na técnica do bordado de esmirna, introduzida pelo mestre, para criar “Inconveniente”. “Mais que uma criação, é a materialização de um destino onde quero chegar, um lugar onde a liberdade e a expressão encontram sua forma”, diz.

Com uma obra sem título, Miriam Porto lembra que Vecchietti sempre foi um homem à frente de seu tempo, na busca de novas técnicas e conceitos, utilizando o ponto esmirna em tapeçaria para redesenhar seus ícones. Em uma foto que tirou do rebento de uma palmeira, desenhou em seu entorno e bordou detalhes como inovação da natureza.

Max Moura e o rompimento de padrões tradicionais

Max Moura, o primeiro homenageado pela Acap, em fevereiro, inspirou o presidente Gelsyr Ruiz em “Rios Voadores – Um Fio de Esperança”, onde focaliza o período em que Moura rompe com os suportes tradicionais retangulares e quadrados, predominantes entre os artistas catarinenses da época, incorporando técnicas de colagem, fotogravura e outras experimentações materiais.

Da mesma forma, a vice-presidente, Maria Esmênia, traz “Manifesto da Fresta”, instalação composta de um cobertor tomara que amanheça e um mapa-mundi impresso sobre tecido em um suporte de bambu sustentado por pés de concreto. “Neste trabalho, sob o legado de Moura trago minhas inquietações e as exponho sobre varais, preservando as referências do artista e contextualizando minha obra no atual momento político, social e econômico mundial, em uma referência aos milhões de pessoas que vivem em situação de rua, fruto das desigualdades sociais e da má distribuição da renda.”

Andrea V Zanella também dialoga com Moura em duas obras. Lembra que o artista considerado o “eterno enfant terrible da arte catarinense” lançou mão de técnicas variadas, como pinturas, gravuras, desenhos, monotipias e instalações sobre superfícies variadas, conjugando cores primárias e variações do preto e branco.

Extraindo elementos de algumas obras, os trabalhou com diferentes linguagens e materiais. De “Figura de Mulher”, recolhe o arabesco para construir, pelo bordado e desenho em tecido de algodão, “Sororidade”. Na segunda obra, “Expressões”, fitas de cetim de variadas cores descem de um suporte de madeira, como metáfora para as possibilidades plurais de existência com as quais convivemos.

Meyer Filho, as lendas e a força dos quintais

Silvia Da Ros usa o bordado livre sobre tecido para ressignificar Ernesto Meyer Filho em “qui omnia videt” (o que tudo vê) e lembrar uma passagem em que Meyer Filho, na Lagoa da Conceição, bem no alto, onde acaba o calçamento de pedra feito especialmente para passagens (1845 e 1861) do imperador Dom Pedro 2º, põe-se, deslumbrado, a observar o entorno.

Um tanto maravilhado, rodopia em busca de questionamentos como “Marte é aqui? Marte não é aqui?” E recorrendo aos lápis e papel – que sempre enchem seus bolsos à espera de seres arrebatados de espaços extras – cria mais e mais para certificar-se de que está em seu pleno juízo criativo.

Em “Além do Quintal”, Audrey Laus usou colagem e bordado sobre fotocópias de fotos para ressignificar Meyer Filho, repensando as dimensões possíveis de quintal, um lugar de memórias e experimentações, de onde o artista tirou o galo fálico e de potência criadora.

Rodrigo de Haro e o sagrado angelical dos cemitérios

Eliane Veiga ressignifica Rodrigo de Haro com o sagrado, tema recorrente de sua obra, com “Angelitude 1” e “Angelitude 2”, duas gravuras com colagens de fotografias de anjos. As fotos foram tiradas de esculturas no cemitério de Itacorubi, onde os anjos remetem a memórias afetivas e ao processo criativo. A artista recorda que quando criança visitava o cemitério com a mãe e gostava de observar as esculturas de anjos. Desde 2000, vem fotografando esculturas de anjos em diversos cemitérios e construindo linguagens sobre o tema.

Larissa Arpana expõe a resiliência por meio de Martinho de Haro

Para “Movências, a secretária da Acap, Larissa Arpana, propõe duas instalações em que ressignifica Martinho de Haro. “Resiliência” é um diálogo visual entre a paisagem devastada e a persistência melancólica da vida, ecoando o olhar sobre a luz e a terra característicos das obras de Martinho.

Nela, o mundo da floresta, da arte e da ruína coexistem — um sustentando o outro. O dourado é cicatriz. E a floresta-pulmão é o corpo que tenta recompor-se. E do açúcar das beterrabas desbotadas das antotipias, o vermelho é memória da seiva, do sangue, da perda.

“Resiliência 2” lembra as caminhadas matinais de Larissa com a cachorra, quando observa o entorno e nota as “pequenas rebeldias verdes” que emergem de fissuras quase invisíveis no concreto. “Minha busca visual pelas rachaduras do mundo é o gesto de perceber aquilo que pulsa na margem, nas fendas. O encontro da minha obra com a de Martinho reside no vínculo inquebrável com Florianópolis, embora diferimos na maneira como lidamos com a luz e a resistência”, reforça, acrescentando que sua instalação se volta para a luz que as plantas buscam nas micro-paisagens das fendas.

Assim como Martinho, Maria de Minas também escolheu a Ilha de Santa Catarina para viver, e considera Florianópolis a cidade mais bonita do mundo. Se ele retratou a cidade, com seus prédios e cais, como quem pinta uma musa, “Céus de Haro” é uma reflexão sobre tempo, memória e a permanência de uma paisagem que, mesmo em constante mutação, continua a ser o espelho de uma identidade singular.

Marlene Eberhardt criou em aquarela sobre papel a pintura “Memória em Movimento”, na qual a paisagem da Ilha, sensivelmente captada por Martinho, reaparece em nova camada de significados: a do movimento e da impermanência, com cores orgânicas e texturas sintéticas, traduzindo as degradações do território e o rumor de uma natureza que pede atenção.

A lenda esquecida resgatada por Ricardo Rosário

Ricardo Rosário homenageia três artistas: Meyer Filho, Pedro Paulo Vecchietti e Rodrigo de Haro. E a “Coruja Cósmica X”, apresentada na exposição do BRDE, ressurge. “Juntei os três para contar uma lenda deste ser que veio do espaço (releitura de Meyer), adicionando uma simbologia relacionada às estrelas (Vecchietti) e, por fim, mostrando Florianópolis (Rodrigo de Haro).

A “Coruja…” resgata lenda sobre um ser que veio do espaço e transmutou-se na forma de coruja, para conviver com os outros animais. Porém, não conseguia respirar e foi obrigada a usar seu capacete cósmico, escondendo-se nas florestas da Ilha. A última pessoa que a viu teria enlouquecido e se jogado da Pedra do Frade, na Lagoa da Conceição. Desde então, ficou conhecida por trazer mal agouro para quem a avista.

“Simbologia Cósmica 1 – A Coruja” estuda uma civilização pré-humana, onde são analisadas as posições das estrelas e fenômenos cosmológicos, fazendo menção a um período obscuro, com guerras entre povos que foram amigos. “A Terra entra em colapso, aparecem falsos profetas e muitas pragas, causando incontáveis mortes. A pintura a óleo representa esta simbologia, onde não temos nenhum tipo de resquício pré-humanidade (Vecchietti).”

Por último, “Avistamento” se volta às lendas da Ilha e ao ser que, se visto em uma noite em que o alinhamento cósmico está apontando para a constelação da Coruja, faz o vidente enlouquecer. Dizem que o céu ficou com uma cor diferente naquela noite que ele se jogou (Rodrigo).

O tecido visto como uma pele exposta

Rodrigo Gonçalves volta a dar ao tecido a silhueta de um corpo que se delineia em linha vermelha, como um arqueiro em tensão, um mártir atravessado, caçador e ferido. São Sebastião e Oxóssi se encontram no mesmo gesto — a flecha que fere e a flecha que protege transformadas em agulha, costura e cicatriz. Suspensa, sua obra habita o intervalo entre a ausência e o rito. Pende como vestimenta à espera de um corpo que já não está, ou que se esconde nas dobras do ar, num esforço pelo milagre da sobrevivência.

Marilene de Orleans criou “Alquimia Circular”, onde lembra que tudo na natureza é cíclico, como o nascer e o pôr do sol, o fluir das marés, o ciclo da lua, o pulsar do coração, movendo-se em espirais. Nesse movimento contínuo, habita o mistério de transformar o viver em comunhão com o todo, onde ser alquimista é transformar o comum em sagrado.

PRÓXIMAS EXPOSIÇÕES DA ACAP

Mesc (Museu da Escola Catarinense)
“Coletoras: Ressignificação de Eli Heil e Vera Sabino”
Quando: de 5/12/2025 a 31/1/2026

MArquE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)
Além das seis exposições de 2025, a curadora Meg Tomio Roussenq assinará em 2026 coletiva exaltando Franklin Cascaes, no espaço que guarda o acervo do artista
Quando: 3/3/2026

Para acompanhar a Acap:

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