Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho é Doutora em Letras Clássicas (USP e Brown University) e Mestre em Filosofia (USP). Pesquisadora nas áreas de filosofia e retórica gregas e de literatura dramática e cinema. É professora no projeto Grego antigo on-line, na PUCSP/COGEAE.
Independentemente de saber quem foram as suliotas, o espectador do quadro Mulheres Suliotas certamente se impressiona com a cena de crianças e mulheres em situação de súplica e desespero evidentes. No centro, mais bem definida, uma mulher de joelhos, braços e olhos levantados ao céu, com uma criança agarrada à saia; em torno dela, mulheres com roupas em forte desalinho ou meras sombras sobre um fundo azul escuro, de tal modo dispostas que seus vultos parecem parte do rochedo em que estão. Destacando-se, à esquerda, a cabeleira negra de uma mulher, cujo corpo, de bruços, cobre um bebê do qual sobressai a face, apenas esquematicamente esboçada, mas, por isso mesmo, perturbadora.
O conhecimento histórico do fato que o quadro retrata aumenta o sentimento de comoção de que somos tomados à primeira vista. Trata-se de um episódio de guerra de gregos contra turcos, mais particularmente da batalha de Zalongo, na região de Épiro, noroeste da Grécia. Em dezembro de 1803, após a queda de Souli, um grupo de mulheres gregas preferiu matar suas crianças e a si mesmas, a se entregar aos soldados sob o comando de Ali Pasha. Há, hoje, no local, uma enorme escultura de pedra, em homenagem ao heroísmo destas mães infanticidas e suicidas. Eventos da guerra de independência grega, em parte pelo caráter simbólico que os artistas românticos davam à tradição helênica, eram um tema recorrente na pintura européia. Eugène Delacroix, por exemplo, pintou O Massacre de Quios, 1824, e A Grécia Sobre as Ruínas de Missolonghi, 1827, este último uma homenagem ao poeta Byron, morto na Grécia em luta pela autonomia daquele país que, para o ocidente, é visto como matriz de liberdade e democracia.
O pequeno quadro Mulheres Suliotas (circa 1856/58) de Victor Meirelles, de 32×42 cm, é uma cópia do enorme quadro de Ary Scheffer, Les Femmes Suliotes (1827, com 261×359 cm). No entanto, o fato de ser cópia – um típico exercício de aprendizagem, praticado nas academias – não diminui o valor desta pintura. Talvez a origem deste valor negativo dado à prática da cópia esteja na tradição platônica que desmerecia a obra de arte por considerá-la mera cópia ou simulacro da realidade – por conseguinte, a cópia de um quadro teria ainda menos valor. Não nos pautamos por este critério. Mulheres Suliotas de Victor Meirelles é uma obra autônoma, e certas opções como a menor definição dos rostos e figuras retratados ou o próprio fato de ter escolhido como modelo o quadro de Sheffer, revelam, a meu ver, uma faceta do trabalho artístico de Victor Meirelles, e mesmo seu engajamento com uma determinada proposta estético-política.
Para os que têm algum contato com a tradição grega clássica, é muito difícil, ao ver Mulheres Suliotas, não se lembrar, também, do paradigmático e complexo mito de Medéia, personagem da tragédia homônima de Eurípides, que, apesar do sofrimento, prefere matar os filhos a deixá-los viver sob a guarda do pai, marido traidor que quebrou um juramento sagrado. Mesmo sobrevivendo a esta catástrofe – o que a distingue das mulheres suliotas – ela pode ser vista como heroína trágica, em parte pela radicalidade de seu ato, aliado à defesa de determinados valores tão caros à moralidade grega. Outro exemplo famoso é o heróico sacrifício de Sócrates, filósofo que não temeu a perda da própria existência, preferindo a morte digna à vida de humilhação e desonra, segundo a imagem que dele nos deu Platão. Além de um diálogo com esses modelos tão famosos, o quadro de Victor Meirelles nos faz refletir, também, sobre o comportamento bárbaro e recorrente dos homens em guerra e a atitude de soldados que violentam mulheres como expediente de humilhação dos vencidos. Nesse sentido, escolher copiar este quadro é um modo de expor a violência, dando ao espectador a possibilidade de se colocar no lugar do outro, de mergulhar nos recantos sombrios da condição humana e refletir sobre nossa fragilidade.
Do ponto de vista da figuração da morte feminina na cultura grega clássica, que reverbera ao longo dos séculos por meio de modelos como os de Antígona ou Macária, há que destacar um aspecto quando pensamos na “morte trágica”. Como já foi analisado por Nicole Loraux, ao tratar, em um perspicaz estudo, da figuração da morte feminina na tragédia grega (no livro citado abaixo), “as mulheres trágicas morrem violentamente. Com maior exatidão, uma mulher conquista sua morte nessa violência” (p. 25) “sejam elas femininas ou viris, há para as mulheres um modo de morrer segundo o qual elas permanecem plenamente mulheres” (p. 47). Nesse sentido, podemos dizer que Victor Meirelles (e Sheffer) se insere nesta tradição, mesmo mostrando mulheres comuns. Pela singularidade e radicalidade do ato – e segundo testemunhas, cada uma antes de se lançar no abismo teria entoado cantos fúnebres –, a composição do quadro transporta essas mulheres para a esfera do padrão heróico masculino, reforçando, ao mesmo tempo, a simbologia do corpo feminino exposto, com seio e costas a mostra, ainda que na chave do corpo maternal.
No entanto, não há como negar que se trata do heroísmo na e pela morte, e a cabeleira negra que quase sai dos limites do quadro parece ser também um signo de morte (lembremos que Victor Meirelles colocará cabeleira semelhante na sua Moema, como, também, notou Jorge Coli ao falar da “medusa dos cabelos” da índia náufraga, esta Vênus anadyomene tropical). Se considerarmos a imagética da morte na tradição grega antiga, veremos que era na figura de Medusa que o homem grego expressava a experiência de uma alteridade radical em relação à vida (tema analisado por Vernant, no livro citado abaixo). Medusa está na mesma esfera de atuação que Perséfone, mulher de Hades. Górgona por excelência, essa criatura de olhar petrificante conduz-nos ao mundo dos mortos, sendo um dos mais fortes atributos de sua representação a frontalidade da face, que joga com as interferências entre o humano e o bestial, com uma cabeleira tratada como juba leonina ou constituída por serpentes (como a retratada por Caravaggio, em seu Medusa, de 1598). Por outro lado, seu poder apotropáico é famoso. Atena utilizou a cabeça de Medusa no seu escudo, para transformar em pedra seus inimigos, e Héracles presenteou seu amigo Cefeu com uma madeixa do cabelo de Medusa, pois esta, ao ser mostrada, tinha o poder de afugentar todo um exército inimigo (veja abaixo, Grimal, no verbete Cefeu). Mulheres Suliotas também coloca-nos diante de uma experiência radical: o momento em que a morte está diante de nossos olhos. Como espectadores, vivemos, vicariamente, a morte que, historicamente, as mulheres suliotas e seus filhos enfrentaram.
A meu ver, de modo análogo a Perseu, não com espada e escudo, mas com pincel e tela, acentuando os tons escuros das figuras muito mais definidas e claras no quadro de Sheffer, a cópia de Victor Meirelles é plenamente capaz de provocar a experiência estético-política da alteridade e colocar a morte trágica diante de nossos olhos. A morte representada dessas mulheres e de seus filhos, com destaque para a face-máscara do bebê ao lado da cabeleira negra, nos faz ver e sentir, mais que o terror da morte em si, aquela outra morte que pode atingir o ser humano: a morte em vida, que é a hipertrofia da bestialidade nos atos de guerra, nos reduzindo à esfera animal. Estamos defronte de transfigurações de Medusa, de experiências de alteridade, de terror, provocadas não mais pelos deuses, mas pelo próprio homem.
Referências:
COLI, J. Meireles em Roma in COLI, J. XEXÉO, M. E BRAUNSCHEVEIGER, F. Vitor Meireles, um artista do império. Rio de Janeiro, MNBA, MON, 2004, P. 43.
GRIMAL, P. Dicionário de Mitologia Grega, Lisboa: Difel, 1993.
LORAUX, N. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
VERNANT, J-P. A morte nos Olhos, figuração do outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.