INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

Domingo (esboços sobre os desenhos de Martinho de Haro)

por Fernando C. Boppré
Historiador
fernando.boppre@gmail.com

para Victor da Rosa
– este texto (é) parte de você também –

“Mas a verdade é que o descampado tinha uma existência limpa e estrangeira. Cada coisa estava no seu lugar. Como um homem que fecha a porta e sai, e é domingo. Além do mais, domingo era o primeiro dia de um homem. Nem a mulher fôra criada. Domingo era o descampado de um homem. E a sêde, libertando-o, dava-lhe um poder de escolha que o enebriou: hoje é domingo! determinou categórico.”
(Clarice Lispector, A Maçã no Escuro)
DO ESTADO DE EXCEÇÃO

É domingo nos desenhos de Martinho de Haro. É domingo porque não há céu. Não há cor. Não há aquilo que caracteriza e que identifica a obra do artista. É um Martinho desconhecido. Um Martinho traído pela falta, pela ausência das ferramentas que melhor sabia usar. Encontramos um outro Martinho, trabalhando no silêncio do grafite sobre o papel.

Este texto se chama “Domingo”. No entanto, também poderia se chamar “Sábado”, caso fôssemos judeus. Isso porque o sábado e o domingo representam tanto para o judaísmo quanto para o cristianismo dias de exceção. E é esse dado – o da exceção – que interessa neste primeiro momento. Portanto, de um lado, vislumbra-se o sábado judaico que na Torah assinala o descanso de Deus após haver consagrado os seis dias anteriores à criação do mundo. De outro lado, o domingo cristão, destinado também ao repouso, mas por outro motivo: a ressurreição de Jesus Cristo.

Em comum entre o sábado judeu e o domingo cristão está o fato de serem dias em que se instala um certo estado de exceção: ao invés do trabalho, o descanso; no lugar do deslocamento cotidiano ao local de trabalho, a permanência no lar ou o passeio. Enfim, uma espécie de cessar-fogo ocorre a cada sábado judeu e a cada domingo cristão: um eclipse na ordem das coisas.

DA CONFUSÃO

E ao dizer “Domingo”, não se trata de um dia específico, mas sim de um desconcerto em relação ao estado ordinário das coisas. Domingo estabelece o avesso daquilo que se concebe ordinariamente como um dia. De modo geral, o dia é esse espaço de tempo dedicado ao trabalho pela parte da manhã e da tarde e ao sono na parte da noite. O domingo ignora o trabalho, o domingo estende o horário do sono, quando não o instala na parte da tarde, criando uma confusão entre o dia e a noite. O domingo faz com que as coisas se confundam.

Hoje é domingo porque é dia de desordenar alguns discursos, de confundir algumas coisas. E o ato de confundir diz respeito não a um suposto caos em relação às coisas já estabelecidas, mas sim a uma ação de retirar do lugar, de embaralhar as cartas que antes pareciam formar um todo, um jogo fechado. Confundir significa reunir sem ordenar, colocar impossibilidades às perguntas e às respostas usualmente fornecidas em relação ao trabalho de Martinho de Haro.

Acervo Família de Haro
Acervo Família de Haro

E nos próprios desenhos é possível ver uma cidade confundida. Não sabemos precisamente em que plano Martinho trabalha: o barco em cima da ponte, a ponte em cima das casas. Uma rua se empilha em cima da outra, o detalhe da arquitetura dos casarios e edifícios é sintetizado em apenas alguns traços tornando-os de difícil identificação, meio invisíveis na paisagem da cidade. Casas, prédios e telhados se confundem.

DADOS DA EXCEÇÃO

1º) Martinho de Haro: um estrangeiro. Um homem de origem hispânica que nasce na serra catarinense que segue para o Rio de Janeiro que viaja para a Europa. Nascido em 1907, chega para residir definitivamente em Florianópolis somente em 1942, com 35 anos. Portanto, boa parte de sua formação artística e existencial se deu em campo estrangeiro. Eis o primeiro dado: pensar Martinho como um estrangeiro em Florianópolis – e não como um artista florianopolitano.

2º) Florianópolis, uma cidade-ilha. Uma ilha: sempre uma exceção em relação ao continente.

3º) Os desenhos são exceções na obra de Martinho de Haro que é reconhecido por seus quadros em pintura. Somente agora, em seu centenário, tem-se a chance de ver seus desenhos. Adentra-se, portanto, num terreno obscuro, numa vereda desconhecida de seu trabalho.

4º) Nestes desenhos assim como em algumas de suas pinturas, quando Martinho retrata a cidade, ela aparece deserta, sem qualquer circulação ou permanência de pessoas. É um deserto que se faz presente nesses desenhos.

5º) Boa parte dos desenhos apresentam uma cidade sem céu e sem mar, elementos que se destacam na pintura de Martinho.

SOBRE A AUSÊNCIA DO CÉU E DO MAR

Há poucos céus em seus desenhos em preto e branco mesmo porque representar o céu não é uma tarefa nada fácil tendo em vista apenas o recurso do grafite sobre o papel. Por sinal, o céu e o mar são motivos da pintura, por excelência. Isso porque não são objetos ou coisas do mundo dispostas diante de nossos olhos prontos para serem reproduzidos (como uma garrafa, uma rosa ou uma pessoa). O céu e o mar não podem ser representados inteiramente (não há foto ou pintura de todo um céu, de todo um mar, como há de um cavalo ou de uma rua da cidade). Não são continentes. Para complicar ainda mais estão em eterna movimentação. E pensando bem, talvez o céu e o mar não sejam motivos da pintura, por excelência, mas sim do cinema. Ou, refletindo ainda mais, nem do cinema talvez. Isso porque há uma certa resistência à representação do céu e do mar. A cada hora do dia é preciso dizer: “muito prazer”, como se estivéssemos conhecendo algo de novo a cada instante.

No entanto, quando se tem por foco apenas a obra de Martinho de Haro, quando temos presente apenas o recurso do desenho e o da pintura (nunca chegou a realizar um filme cinematográfico, por exemplo) para expressar as coisas do mundo, inegavelmente, o céu – e também o mar – acertam-se melhor em sua pintura. Afinal, relacionam-se diretamente com a luz. Pensar o céu e o mar na obra de Martinho significa também refletir sobre a luz. Uma questão cara não apenas a Martinho de Haro mas à arte brasileira, retomando aqui o pensamento curatorial de Paulo Herkenhoff, que realizou a exposição “A Trajetória da Luz na Arte Brasileira”. E, mesmo sem querer adentrar à pintura de Martinho, que não é o objeto do presente texto, pode-se dizer, rapidamente, que Martinho não se cansou de investigar a luz. Nas famosas visões da antiga orla do Centro de Florianópolis (onde aparecem a Alfândega com casarios e prédios ao fundo), percebe-se que Martinho exercitava estados atmosféricos: cada instante definia um novo jogo de luz e uma nova relação entre as coisas. Num mesmo palco, diversos cenários eram compostos. Muitas vezes, parece que o próprio palco se torna de menor importância. Martinho rebaixa a cidade, deixando a maior parte do quadro reservado ao mar e ao céu. A questão plástica vence o esquematizado esforço documental de Martinho. É ótimo ver os casarios e prédios esquematizados de Martinho cederem lugar ao céu e ao mar.

DO VAZIO, DO BRANCO DO PAPEL

 

Acervo da Família de Haro
Acervo da Família de Haro

 

É melhor ainda, contudo, assistir o céu e o mar (ou seja, espaços onde Martinho exercia com excelência o ofício de pintor) darem lugar ao vazio, ao ausente, ao branco do papel, como ocorre em seus desenhos. Sim, os céus das pinturas de Martinho são impressionantes, mas que se deixe disso por ora. Arrisque-se o banal ou mesmo aquilo que Martinho não chegou a tocar: o branco do papel, o “entre-os-traços”.

A VIOLÊNCIA PREMEDITADA DO DESENHO

Acervo da Família de Haro
Acervo da Família de Haro

 

Não quer dizer que não haja desenhos em que Martinho esboçou um céu a grafite. Quando isso ocorre, podemos perceber uma certa violência controlada. Um caos detido. Por sinal, todo desenho é uma violência controlada assim como todo pouso de um avião é também uma queda controlada. O desenho é uma violência controlada porque se trata de uma violação do branco do papel. O próprio contato do grafite com o papel é uma ação violenta: risca-se o papel. O traço rasga, fura e atordoa o que até então era vazio. Uma violência estudada, premeditada: desenhar é mais difícil do que colorir (na escola, aprende-se primeiro a preencher com cores figuras previamente desenhadas: um peixe, uma pessoa, etc.). É preciso certo saber para violar o branco do papel.

DESENHO COMO DESENHO

Martinho exercita em seus desenhos esse saber (violar o branco do papel) tendo em vista a sua pintura. É ótimo, contudo, desfazer essa relação. Observar os desenhos como trabalhos que se fecham em si mesmos. Ao invés de lamentar o aspecto inacabado, de relegá-los à categoria de esboço, podemos pensá-los como um espaço pleno onde Martinho desenvolve um processo que coloca problemas relativos ao próprio desenho. O fato de Martinho não expor seus desenhos apontam um caráter subterrâneo dessa produção. É neste sentido que é possível pensar uma traição ao Martinho que conhecemos: trazer a tona e pensar acerca de algo que ele próprio não havia colocado a disposição do público. Extrair questões de um repertório até então subtraído.

UM PARÊNTESE EM PRIMEIRA PESSOA

Sempre me encantou a idéia de domingo: quando criança achava estranho que meus pais não iam trabalhar, que podiam dedicar atenção a mim e ao meu irmão, que íamos almoçar na casa dos avós (esses seres domingueiros por excelência), que íamos passear numa cidade irreconhecível por estar quase que deserta. Os seres e as coisas ganhavam uma nova dimensão simplesmente por ser domingo. E mais: sempre pensei que um projeto de ruína se estabelece a cada domingo no Centro de Florianópolis. A súbita impressão, ao caminhar aos domingos pelo Centro da cidade, que alguma represa estava sendo criada, que a cidade estava sendo esvaziada para se tornar uma hidroelétrica. Domingo é o dia em que a cidade não parece cidade. A cidade em pausa, desprovida daquilo que lhe faz urbana: das pessoas

DA SUSPENSÃO DOS ATRIBUTOS

Domingo: suspensão dos atributos. Dos ruídos. Das características das coisas. Domingo: esse dia meio perdido, meio insone. Onde parece que nada começa, que nada termina. Domingo, esse dia que nunca se assusta com ele próprio mas sim com a proximidade de um outro: a segunda-feira. Domingo: onde nunca se sabe exatamente o que fazer: descansar, adiantar trabalho de segunda-feira, soltar pipa ou almoçar na casa dos pais. Domingo: o primeiro dia da criação do mundo.

Na passagem de Clarice Lispector que serve como epígrafe deste texto, lê-se que domingo seria o primeiro dia do homem. No entanto, sabe-se que o homem, na narrativa do Gênesis, surge apenas no sexto dia, ou seja, na sexta-feira. Mas talvez seja exatamente isso que Clarice nos diz: domingo é o primeiro dia do homem porque é o primeiro dia de Deus criando o mundo. E no sexto dia, quando Deus cria o homem, ele diz: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança”. Há, portanto, um pouco de Deus em cada homem e um pouco de homem em Deus. Logo, o homem já estaria presente no primeiro dia, pelo menos em potência.

É interessante se aprofundar um pouco mais nessa narrativa do Antigo Testamento. O Gênesis assinala a criação do mundo e não o fazimento (fazer) ou a produção (produzir) do mundo. Isso porque o verbo “criar”, em hebraico, tem características próprias e é empregado apenas referindo-se a Deus, nunca para o homem. A palavra ‘criar’ sempre anuncia algo novo e indica também a falta de esforço, ou seja, a realização de algo pelo trabalho mas sem consumo de energia corporal.
É domingo nos desenhos de Martinho porque parece que há sempre uma economia, uma liberdade em relação àquilo que se concebe. Os desenhos admitem a falha, o traço equivocado. Incorporam o vazio não como o não-desenhado, mas como parte significativa de uma composição do acaso.

DO TRABALHO

Uma diferença sutil entre os termos “obra” e “trabalho” no presente texto. Entende-se “obra” como aquilo que, de modo geral, se toma como sinônimo do artista. Ao enunciar: “A obra de Martinho de Haro”, cria-se uma série de imagens na cabeça de cada leitor, boa parte delas referenciada a partir de um discurso que posiciona o artista na égide de uma dita história da arte catarinense. Um discurso que adora rever a cidade de Florianópolis representada nas suas pinturas. Que não se cansa do mesmo e que tem um certo sentido opressivo: o de valorizar a obra do artista, almejando levá-la ao panteão da arte brasileira. Nada disso interessa aqui, mesmo porque Martinho de Haro não é um artista genial. Aliás, seria preciso banir essa idéia de artistas geniais que funcionam como referência para um campo artístico. Os artistas são interessantes à medida que oferecem problemas para serem pensados no interior de determinada questão seja ela intelectual, plástica, teórica, etc. Fora disso, são apenas nomes: Martinho, Eduardo, Victor, Franklin, Carlos. Então, prefere-se grafar o “trabalho” de Martinho de Haro porque com este termo é possível abarcar o Martinho desconhecido: aquele que não está pendurado nas paredes das casas e apartamentos dos colecionadores, aquele que hesita com o lápis sobre o papel, aquele que não aparece nos textos oficiais dos museus, aquele que se esquece de comemorar seu próprio centenário, aquele que erra um traço e não precisa apagá-lo porque o papel do esboço não cobra isso do artista ao contrário da tela preparada.

É domingo nos desenhos de Martinho porque não se pode a eles atribuir a mesma matriz explicativa no que diz respeito a sua posição na suposta arte catarinense, sobretudo, florianopolitana. Não podemos nos enganar: são as pinturas de Martinho e os desenhos de Franklin Cascaes que amarram boa parte da história da arte local. Toda uma necessidade em se falar do local, de se caracterizar a paisagem e o modo de vida ilhéu descendem, diretamente, da obra destes dois artistas. Um modo de se pensar e de se fazer arte, sobretudo, apegado à figuração e à narração foram por eles exercitados: Martinho comentava a paisagem, Cascaes descrevia os costumes. A necessidade de uma cor local foi atendida pela obra destes dois artistas. Após eles, seguiram-se Aldo Nunes, Meyer Filho, Hassis, Tércio da Gama, entre tantos outros que dedicaram parte de sua obra a continuar essa infindável narrativa ilhéu que alcança, atualmente, uma espécie de mediocridade plástica. Este fenômeno ocorre ainda em maior escala em nosso artesanato que repete, exaustivamente, alguns ícones da cidade.

O DESCAMPADO

Domingo é o primeiro dia da criação do mundo. É o dia em que Deus cria a luz e a separa das trevas. “1. No princípio, Deus criou os céus e a terra. 2 A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas. 3 Deus disse: ‘Faça-se a luz’. E a luz foi feita. 4 Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5 Deus chamou dia à luz e às trevas noite. Assim, surgiu a tarde, e em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.”

Domingo é, portanto, um dia com luz, mas é também um dia descampado, como disse Clarice Lispector: “Mas a verdade é que o descampado tinha uma existência limpa e estrangeira”. A existência é limpa de outras coisas: no domingo ainda não foi criado o firmamento, ainda não há vegetais, ainda não há animais, muito menos o homem. É um mundo com luz, com águas, mas estéril. Domingo é, portanto, um dia da ausência, que o Espírito de Deus continua a se mover sobre a superfície das águas, agora iluminada e pronta para ser desenhada, pintada, fotografada, enfim, representada. Ainda assim é vago: representar o quê? Quem? Até onde se estende esse deserto? Domingo é um dia em crise: ainda que se tenha luz, não se existe coisa alguma para ser representada.