INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

Sob a luz de Martinho de Haro

por Walter de Queiroz Guerreiro

Redescobrir Martinho de Haro como um arcano modernista dos anos 1940 na arte catarinense surge como uma obviedade diante de sua obra, desde sua participação com os rapazes de 30 do Núcleo Bernardelli. Shapiro, ao conceituar estilo, nos diz que este é, antes de tudo, um sistema de formas tendo qualidade própria e formas significantes, através das quais se tornam visíveis a personalidade do artista e a visão de mundo de seu grupo, por isso independente de querelas a propósito de filiações e paternidade, Martinho de Haro desponta como o primeiro modernista do estado.

Se existe algo marcante, e uma constante na produção deste artista é a paisagem, agora não mais vista como assunto temático da maneira como os acadêmicos a consideravam, junto às naturezas-mortas e aos nus, porém como possibilidade de interpretação plástica.

Essa grande divisão temática agora não fazia mais sentido, a pintura en plein air, dal vero como faziam os Macchiaioli, passara a ser executada no ateliê, uma oportunidade de exercício para os valores picturais e de uma visão cultural própria, como metáfora vivencial.

Na “Introduzione alla critica del Paesaggio” de Rosário Assunto, surge interessante colocação que aclara muito bem o enfoque modernista sobre a paisagem. Ele nos diz, “existem paisagens em que a presença material é resultante de um processo da ação humana lado a lado à sua estética, e há outras em que a sua razão estética não decorre de um processo produtivo, mas daquilo que chamaríamos “atribuição de significado,” em relação à presença material pré-existente; essa razão estética resulta de uma descoberta (e aqui vejo o enfoque modernista) que faz com que as coisas naturais tornem-se objetos estéticos”.

Essa descoberta da paisagem em si, com um significado pessoal, aparece em Martinho quando nos damos conta que ela surge como contraponto da vida cotidiana que nos enfada, da qual procuramos nos afastar, a que gostaríamos de expressar uma oposição radical, e ela é então transposta livre da presença humana, de todos seus artifícios e marcas, como símbolo de vida. Porém, não queiramos enxergar Martinho com uma visão alienada do real, parnasiana buscando o Éden na Ilha de Santa Catarina, as construções ali estão e se integram nesse novo conceito de paisagem, os barcos, aqui e ali chaminés do processo de industrialização que ameaçam este paraíso perdido. As raras formas humanas quando presentes na paisagem são assinaladas por resíduos do passado, carroças puxadas por cavalo, acentuando talvez um desencantamento latente de perda, daquela paisagem nativa ainda viva e intocada na memória do artista.

Queiramos ou não, a sensibilidade à paisagem se forma em todos os lugares como um romantismo tardio, um academismo aprés la lettre, visível até mesmo pelas palavras empregadas na mídia impressa: pitoresca, característica, encantadora… numa verdadeira enxurrada de atribuições melosas para aproximar o leitor de uma concepção da natureza, consagrada no imaginário humano. Surge aí a grande dificuldade para o artista moderno, se afastar da leitura fácil das paisagens rurais e urbanas, daquela visão estereotipada e por isso fácil, desgastada, para outra prenhe de significados.

Só existe um caminho para imprimir modernismo à paisagem historicamente consagrada, deixar claro o processo de expansão urbana e a proliferação das construções, de caminhos dividindo o espaço, da industrialização substituindo as estruturas agrícolas dos moinhos e das medas de feno, com a presença indissolúvel da mão humana, alterando e construindo uma nova paisagem. Cria-se assim a urbe ideal, o novo espaço, como um processo perfeito de integração do homem moderno, que Martinho irá equilibrar entre a natureza onipresente com o mar, e a luz que tudo uniformiza.

Busquemos as origens desta paisagem ideal na história pessoal de Martinho de Haro, desde sua formação na Escola Nacional de Belas-artes, passando pelos contatos com o Núcleo Bernardelli no Rio de Janeiro, e o aprendizado com os fauves na Academie de la Grande Chaumière em Paris. Embora o próprio artista apontasse a importância das aulas iniciais com Henrique Cavalleiro (1892-1975), não me parece à primeira vista que a obra de Martinho de Haro se aproximasse ao impressionismo de seu mestre, a não ser na composição estruturada baseada em Cézanne (1839-1906), que Cavalleiro descobrira na Academie Julian. É isso que, aliás, Menotti Del Picchia (1892-1988) louva em Cavalleiro, sua construção sólida, plasmação de volumes através de linhas precisas e massas sintéticas de cor, e que Martinho irá adotar.

Sua presença no Núcleo Bernardelli é um ponto de controvérsias, enquanto João José Rescala (1910-1986) e Bustamente Sá (1907-1988) negam sua participação entre os nucleanos, o próprio Martinho admitiu suas conversas com Bruno Lechowski (1887-1941) e Pancetti (1902-1958), que teria ouvido pela primeira vez sobre modernismo através de Martinho de Haro. O fato é de que os pontos de vista altos, a perspectiva a cavaleiro nas paisagens marcantes em Lechowski prepondera em Martinho, assim como o gosto pela natureza, a vibração da luz, o desenho marcado e a distribuição de massas na arquitetura urbana.

De qualquer maneira, no Salão Nacional de Artes Plásticas de 1931, a presença de Martinho de Haro se impõe ao lado dos nucleanos, não com uma paisagem, mas com um nu, o seu “Busto de Mulher”, contraponto aos demais românticos do salão, mostrando uma beleza mestiça e pelo padrão estético da época esquálida, porém real da raça brasileira. Enquanto a maioria dos nucleanos buscava a liberdade no tratamento modernizante do fundo, Martinho de Haro ateve-se à naturalidade da forma, a ausência da pose, e a realidade do corpo.

As aulas com Èmile Othon Friesz (1879-1949) na Grande Chaumière foram decisivas para as paisagens modernistas de Martinho de Haro. Mais que a composição e o desenho, é a distribuição dos tons quentes e frios, o afastamento discreto entre os planos, a busca de uma luz solar que uniformize a paisagem é que irá marcá-lo, traduzindo-se numa pintura a plat, com achatamento da perspectiva e fim da ilusão tridimensional no espaço euclidiano.

Para os fauves tudo se resumia em destruir a ilusão espacial, quer enfraquecendo as linhas de fuga, ora utilizando cores fortes do primeiro ao último plano, quer reduzindo céu e nuvens, mas Martinho encontrará uma solução original. Criou assim um colorido próprio, seguindo as palavras de Othon Friesz, para o qual o problema da paisagem modernista era encontrar o equivalente da luz solar por meio de orquestrações coloridas, levando a cor à sua intensidade e rejeitando violentamente o claro-escuro. Para realizar isso a solução seria encontrar um timbre mais elevado na cor, estendendo-o em zonas amplas na composição, o que Martinho irá muitas vezes empregar na predominância dos tons terra, de um marrom achocolatado, impregnado do vermelho carmim da própria emoção, sugerindo a luz pelas diferentes gradações, e em outras no sentido oposto, numa paleta suave dentro da gama do amarelo.

Martinho como ilhéu irá encontrar outro ponto de convergência com os fauves, a preferência por marinhas, não no sentido convencional do tema, mas na inclusão de água e céu, ambas formas que não permitem sombras. O céu será turbulento, como o de Albert Marquet (1875-1947) e Derain (1880-1954) , em pinceladas amplas, carregadas do azul cerúleo, do violeta de genciana que se insinua na atmosfera, e por fim, os cúmulo-nimbos, que mesmo antecipando tempestades, comportam-se como massas de branco, contidas pelas linhas corcoveantes que se afirmam como estilemas próprios. Se Friesz cria um estilema ao encurvar seus toques formando colinas, Martinho irá repeti-los nas curvas da crista das ondas, quebrando no cais do Mercado Público.

Seu grande achado será a luz, uma luz envolvente, uniforme, suave e quente, zenital, de um metálico dourado, sacralizando a comunhão entre o artista e a natureza, solar como nas primeiras horas do dia, transfixando tudo, igualando céu, terra e água, atmosfera prenhe de formas e etérea na aparência. Assim, as formas se diluem e se unem naquela orquestração almejada, sem esfumaturas, com a luz impregnando tudo, pois o ar é belo e a luz sua poética.

Estabelece-se assim uma paz interior, criada por intermédio de uma leitura poética apaziguada com a modernidade transformadora, chegando a seus limites de absorção de um novo mundo, não como um embate, mas como instauração de desejo de abrir uma passagem no tempo, forma utópica de preservar o impossível, naquela forma instaurada de uma passagem moderna.

Martinho de Haro encontrou o belo através da luz, e nas palavras de Courbet (1819-1877) “o belo, como a verdade, está ligado ao tempo no qual se vive, e ao indivíduo que está em condições de percebê-lo”.

Walter de Queiroz Guerreiro é diretor do Museu Casa Fritz Alt. Fez mestrado em Arte (Bachelor in Art), no Courtaud Institute of Art-London University, pós-graduação em história na Universidade de São Paulo, graduação em história SP e em ciências biológicas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da PUC-SP. Fez curso de especialização em arte na Inglaterra, e de técnicas em pesquisa histórica no arquivo Nacional e Ministério das Relações Exteriores. É membro da Associação Brasileira dos Críticos da Arte (ABCA/AICA) e da World Press Association. Atuou como curador em mostras de São Paulo e Santa Catarina.