INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

A MORTA

Profª. Anita Prado Koneski (Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina)

A Morta, Victor Meirelles de Lima, s/d, Rio de Janeiro/RJ, Óleo sobre tela, 50,4 x 61,2 cm
A Morta, Victor Meirelles de Lima

Escolher pode ser também acolher, então, frente ao convite de escolher uma obra de Victor Meirelles, para uma leitura, escolhi falar da obra, que há muito já trazia acolhida: “A Morta”. A obra que meus olhos percorrem, envolvem, e acolhem sempre que vou ao Museu Victor Meirelles. A obra que é um enigma, um abismo, para as minhas indagações, no esforço de interpretá-la.

É a morte, como senhora de si que vejo nesse rosto, cuja boca semi-cerrada, e olhos levemente fechados, me fazem pensar numa “meio-morta”, “meio-viva”, contornada pela delicadeza alva do tecido do travesseiro e da gola da roupa, que conferem luminosidade ao rosto. Digamos que a morte se faz sensibilidade, materialidade, no visível da tinta, na técnica da luz e das formas. Porém, o que vejo, ali, é: a morte mesmo.

Apresentada fora do formato de tela tradicional, a morte, na obra, “A Morta”, parece se aninhar no aconchego amendoado, tal qual um caroço no fruto. Esse aconchego ovalado que aninha a obra, “A Morta”, é uma forma, a meu ver, que rima com as palavras de Rilke, ao se referir aos viventes de sua aldeia: “Cada um continha sua morte como um fruto no caroço. As crianças tinham uma pequena, os adultos uma grande. As mulheres carregavam-na no seio, os homens no peito. Cada um tinha sua morte e essa consciência dava-lhes dignidade, um silêncio, orgulho”. Victor Meirelles carrega, “A Morta”, nessa amêndoa, que a contorna. Carrega a morte como um caroço no fruto, pois, com ela tudo se enclausura como silêncio da obra. Há ali um “murmúrio”, um mistério. Silêncio, porque quando a interrogo, ela não me responde, se faz enigma. Murmúrio, porque no seu mistério, algo me abre para uma experiência “outra”, quando a acolho.

O silêncio da obra é do interesse do mistério e o orgulho do mistério, é essa força profunda de conter a “impossibilidade” de qualquer interpretação. Ela carrega, em si, o enigma da morte. Há, nela, um caráter imprevisível de não se deter em nenhum horizonte, pois, não há como agarrá-la, não há como interpretá-la, a não ser ver os vestígios que fazem ruídos.

Vestígios que são firmados pelo pintor no rosto afilado, no nariz pontiagudo, na passividade, comum nos rostos que abandonam a vida. Há, ali, um afilamento das formas humanas, uma secura da carne, mérito dos que sabem sobre a morte do Outro. O pintor sabe que se morre sempre a morte do Outro, nunca a nossa própria. Só que o pintor “fracassa”, pois, ao tentar desvendar o mistério da morte, pintando-a, faz da obra um mistério. Seu fracasso é, então, o fascínio da obra, que se impõe pelo Desejo, e não pelo fato de poder dizer-se.

Ali, está, o fascínio da morte, “A Morta”, que a meus olhos se faz enigma, inquieta-me, e, portanto, me enche de Desejo. No Desejo, a faço minha, não porque consigo trazê-la à luz com minha interpretação, mas porque infalivelmente não consigo dizê-la. Ela, a obra, é para mim esse “absolutamente Outro”, do qual não tenho acesso, mas que exatamente por isso, tenho diante dela uma experiência fecunda. Ou seja, ela me ensina que nem sempre a fecundidade da experiência repousa na clareza, e que essa pode se dar na recusa e na obscuridade. Minha relação com, “A Morta”, não é com um saber que diz e interpreta a obra, mas com o Desejo, que a faz infinitamente fascínio, para meus olhos que percorrem a amêndoa que se faz clausura de formas, na obra.

Blanchot disse que o artista é aquele que recebe seu poder de fazer arte de uma relação com a morte, para poder morrer contente, para penetrar no abismo, para metamorfosear o visível. Para Rilke a obra de arte era sempre uma experiência de risco. Desta forma, o artista que aceita correr o risco, vive nesse lugar onde a arte é pura ausência de respostas.

“A Morta” de Victor Meirelles nos confere, ao meu ver, uma experiência com o “ruído”. Ou seja, algo nela “murmura” e nos coloca num lugar que não podemos dizer que é o nada, embora ali nada exista, senão um: há. Há um ruído que abala o curso normal de nossos saberes. Nas suas formas tudo se dissimula, é mistério, para além de qualquer interpretação. Porém, nos lança para uma experiência, onde não existem certezas, nem verdades que se possam argumentar sobre a obra, pois ela insiste radialmente em ser essa morte, como um caroço no fruto, onde sua dignidade de obra, seu orgulho, estará sempre preservado. Da obra “A Morta”, confidencio, prefiro alimentar meu Desejo, pelo que nela há de “murmúrio”.