Ana Lucia Vilela é Doutoranda no Programa de Pós-graduação em História da UFSC, atua como curadora e crítica de arte.
Não. Eu não esperava nada menos de você. Mas sigo ignorando a razão da insistência desse seu olhar esquivo. Você é um retrato da recusa.
Em momento algum você dá indícios que irá se voltar e responder ao meu olhar. E, no entanto, se mantém aí imóvel, oferecendo-se, fingindo esquecida do tempo. Um certo desdém impregna seu gesto que consiste em manter tensos músculos do pescoço, de modo a manter a imóvel recusa.
Não é que você estivesse se retirando ou voltando-se para um outro objeto de desejo localizado na sua lateral. Seu tronco voltado para frente contrasta com a sua cabeça mantida, a custa de um certo esforço, de perfil. Você, definitivamente, rejeita dirigir o olhar a quem a olha.
Diante desse seu pescoço tenso – você já reparou toda a tensão que acumula aí? – recuo. É uma tensão que deve gerar movimento? Não. Não se vê a iminência da ação nestes tendões e músculos ristes. Imagem que se recusa a ver. Pois não é isso mesmo que deveriam fazer as imagens, certamente ainda mais os retratos, nos olhar? Destacar e reforçar aquela angústia da observação, a angústia de saber que, a cada olhar lançado, há um complexo de outros olhares que se voltam e nos observam? Daí que sua recusa é de uma estranheza sem igual. Ao recusar um olhar recíproco e, ao mesmo tempo expor-se à visão, essa sua argúcia termina por denunciar a impureza, a mácula desse olhar. A incômoda figura escura e trapezoidal que se forma da sombra que se assenta a partir da clavícula até o contorno de um dos seus ombros dá mostras de que a sua imagem é puro artifício e gera um desconforto, cuja origem não sei precisar. Sendo conseqüência da sua recusa, esta forma te pesa toneladas, e assim também pesa no meu olhar. Uma forma geométrica surgida onde tudo o mais são dobras orgânicas. Por isso é que esse desdém – que já mencionei – te custa tanto; é um desdém simulado e dissimulado.
Você irrita meus pensamentos mais suaves. Essa sua vestimenta branca que escorre pelos ombros poderia ser sedutora. Imagem da esquiva oferecendo-se à contemplação. Estranho desejo para quem, virando o rosto desta maneira, rejeita a observação.
Você é ordinária como tudo que é apenas superfície; você é tão ordinária como qualquer boa imagem: mostra-se insistentemente ao mesmo tempo em recusa e oculta algo. Deixa-se ver e, ao mesmo tempo, desvia o próprio olhar; mas exige o olhar alheio que, quando chega a você não tem outra saída, cai numa armadilha e se percebe visto (vigiado?) também. Sua recusa é tão falsa quanto sua aceitação que se multiplica entre o pintor que te olha, te produz uma imagem que se recusa ao olhar, e entre mim que além de te olhar, vejo também o olhar do pintor sobre você, e você tentando se esquivar dessa trama. Ao pintar o pintor era sabedor que seu olhar seria repetidamente visto. E imaginamos a imagem que te fez recusar olhar. Na tentativa de eliminar um olhar, você os multiplica.
…eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte. (Lacan)