Maria Luisa Távora – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. É professora de História da Arte na Escola de Belas Artes/UFRJ. Também é membro da diretoria do CBHA, membro da ANPAP, ABCA, AICA e co-editora da revista Arte & Ensaios.
Esta pequena obra constitui uma das três aquarelas de que se tem notícia, elaboradas por Victor Meirelles no início de sua carreira, em 1849, quando retorna à sua cidade natal, Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis. Estendendo sua estadia até 1851, realiza nestes dois anos algumas paisagens. Desde 1847, Victor Meirelles morava no Rio de Janeiro, aluno matriculado na Academia Imperial das Belas Artes.
Em sua trajetória, esta aquarela se situa antes do prêmio de Viagem ao Exterior arrebatado em 1852, fato que lhe proporcionou aperfeiçoar-se nos fundamentos da pintura figurativa aplicados, posteriormente, em obras de conteúdos religioso, mitológico e histórico. Esta pintura de Victor Meirelles vincula-se a uma espacialidade de nossa natureza antes mesmo que na ENBA se desse a discussão institucional sobre sua eloqüência em favor de uma brasilidade oitocentista. Segundo este interesse, a paisagem seria agenciada como cenário peculiar à identidade brasileira.
Realizada fora deste limite programático que ganhou vulto na Academia, na segunda metade do Séc. XIX, esta obra singulariza a visualidade da cidade de Desterro, convidando-nos a um encontro. Importa compreendê-la não como a representação da realidade tal qual ele a encontrou, mas uma construção do visto e do recordado que lhe empresta sentido.
A cidade-paisagem, elaboração de uma visualidade do espaço físico, atualiza o processo da pintura do Renascimento que instaura a paisagem como lugar da memória histórica e cultural. Assim, a paisagem desde sua gênese, dependeu sempre da realidade da experiência vivida.
Trata-se aqui, no caso de Victor Meirelles, de reencontrar primitivas lembranças, dando curso a uma aventura do filho que a casa retorna. Contexto-vida do pintor, a imagem criada de Desterro expressa uma sinceridade íntima.
Esta paisagem habita um suporte de reduzidas dimensões, o que não impede que Victor Meirelles a sature de elementos observados, casas, igrejas, que formam uma massa compacta por cujas fendas emerge uma vegetação, manifestação controlada da natureza. A “cidade cresceu” pode ser o sentido do empilhamento das construções umas sobre as outras, operado pelo artista, estruturação da espacialidade da cidade que se revela profunda e não extensa.
A paisagem-cidade não se processa na horizontalidade reveladora do sentimento do ilimitado, mas numa circularidade sugerida pelo pintor através do arco que encima a composição, estabelecendo seu limite. Com esta estratégia, o artista cria uma forma acolhedora, propiciadora de envolvimento e aproximação com o espectador. Sentimo-nos parte da paisagem, pois nosso lugar de observação, num verdadeiro vôo-planado, partilha o ar que os marcos da cidade respiram. Vemos de cima tudo, ou quase tudo. Quase como um manto, a ocultar e a revelar os segredos do pintor, esta curvatura sugere um núcleo de vivências.
Ficamos próximos, íntimos do silêncio que a geometria dos telhados impõe, verdadeira barreira ocultando qualquer reverberação de vida. O que acontece ou aconteceu sob os telhados, cabe-nos imaginar. A transparência da aquarela motiva o olhar a encontrar alguns rastros e respostas.
As poucas janelas percebidas parecem nos olhar e indagar sobre nossa proximidade, resguardando-se na frieza de suas geometrias. Em nossa direção, o movimento ascensional das árvores, verticalidade como ato. Espremidas por essa massa compacta de ocres, telhas, marrons, as árvores se alteiam buscando o ar no qual estamos em vôo-planado. Há polarização do movimento descendente dos telhados e ascendente das árvores. Controle e expansão, gravidade e lirismo.
Victor Meirelles esvazia a cidade, apenas diminutas e raras presenças. Não há lugar para mais ninguém nesta massa de cores, um desenho de si, lugar do reencontro, que reaviva recordações, sonhos, alegrias e frustrações. O vivido feito espaço.