INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS

Museu Victor Meirelles

n. 3 – Depoimentos

Revista Eletrônica um ponto e outro nº 03 – Ana Elisa Dias Baptista

Revista do programa de exposições do Museu Victor Meirelles

Depoimentos

Eu conhecia e admirava muito o seu trabalho. Quando fiquei viúvo, ela veio preencher um vazio. O que começou como uma admiração profissional foi se tornando uma coisa íntima. (…) Ela me ensinou muito mais do que eu a ela. Diante do trabalho dela, tive que repensar o meu próprio trabalho.

Marcelo Grassmann
artista

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A precisão do traço e a temática de Ana Elisa são coisas raras hoje em dia. Seus desenhos e suas gravuras são um todo bem acabado e rico em detalhes e significados. Seus bichos existem para a construção do acervo de algum Gabinete de Curiosidades – impactantes e suavemente tramados numa linguagem transcendental e mística. Suas paisagens têm a precisão de um cenário ideal. Mas, em ambos os enfoques e desejos, são restos de um mundo perdido, fixados no papel. Documentos fiéis, mas cheios da fantasia de uma artista maior.

Antonio Carlos Abdalla
curador

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Em linhas sensíveis gravadas com delicadeza e determinação, Ana Elisa nos coloca frente a uma revelação: a ânsia de deter pela compulsão gráfica cada encantamento seu diante dos momentos mórbidos proporcionados pelos bichos que captura e registra sobre chapas de metal.

Nos atiça a interrogações sobre a vida e sobre o que fazemos dela, sobre a morte e como nos apoderamos dela quando o lado observado é o mais frágil.

Sandra Favero
artista, pesquisadora e professora de gravura do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina

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Às vezes me detenho por muito tempo ao fazer atividades simples. Por causa dos inconvenientes que isso me traz acabo pensando regularmente no porquê disso. E me veio em mente em um dia desses meu avô trabalhando. Ele era carpinteiro. Me lembro dele olhando de perto e alisando a madeira com as mãos; depois colocando o serrote diante do rosto , empunhando-o como uma arma para olhar se ele estava alinhado e em seguida “dedilhando” os dentes da ferramenta para ver se estavam bem afiados. E esse tipo de ritual se repetia em cada etapa do trabalho e se estendia além deste. Então me dei conta de como esse modo dele de viver e olhar o mundo me influenciou. Acho que essa espécie de prática contemplativa (por que hoje me parece mais um exercício de sensibilidade do que preocupação técnica) funciona como uma via de acesso às coisas.

No desenho acho que essa atitude pode ser valiosa, por que gera a possibilidade de experimentar que essa via de acesso tem mão dupla. As coisas nos acessam também. Apesar de toda a abstração que o desenho pode envolver ele nos liga fortemente ao mundo. Pensei muito nisso ao ver os trabalhos da Ana Elisa Dias. No como e em quanto essa experiência dela com esses seres a afeta. Por uma questão de experiência própria fiquei querendo entender melhor o processo de desenhar e guardar isso que pode ser entendido à primeira vista apenas como mórbido mas que envolve um contato íntimo e respeitoso com esses seres. A aceitação dessa diferença (e seus desdobramentos de similaridade), entre nós e um inseto ou uma larva ou um animal, entre a continuidade frágil do ser vivo e a do corpo morto, leva a uma espécie de sentimento de admiração. Palavra que pode parecer muito pomposa mas quando associada, em uma espécie de subversão, aos restos, ao ordinário, ao mínimo, adquire outro sentido. Parece uma experiência que pede humildade do olhar.

Diego Rayck
(artista plástico, ilustrador e professor colaborador de gravura do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina)

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… desenho para não perder, aprisionando no papel aqueles ou aquilo que de outra forma desaparecerá.

Começo este breve texto com um depoimento da artista, a partir de algumas questões levantadas pelo grupo, tendo como foco principal o contato com os ‘modelos’. Na realidade, esta relação com os insetos e animais que a artista representa em suas gravuras e desenhos, norteia de forma significativa minha reflexão, assim como boa parte das discussões do grupo, que se indagava sobre a forma como Ana Elisa se aproximava dos animais, como os escolhia. Perguntávamos nas reuniões, se a artista fazia desenhos de observação ou de memória, se guardava os animais, se os desenhava vivos ou mortos, se os fotografava. Acredito que levantar algumas destas questões sobre a relação com os modelos e os procedimentos, seja importante para pensar sobre seu trabalho. A relação com os animais, em especial, me parece uma via de acesso fundamental ao seu processo.

Questionada sobre a forma como escolhe os animais, a artista afirma que em geral os modelos se apresentam para o serviço: na chácara onde vive, os animais morrem a vista, próximo da casa, são atropelados, se estatelam nos vidros das janelas. A artista observa, desenha e recolhe estes pequenos corpos. Através do desenho, a artista acompanha até mesmo o processo de decomposição de certos animais, como descreve o processo de observação da morte de um pequeno porco espinho, com a seqüência de insetos que se dispôs ao redor da carcaça. O desenho minucioso, obsessivo, a vontade de achar tradução em linhas para os volumes das criaturas. A artista salienta o desenho como disciplina de trabalho, como busca da imagem sempre fugidia. No entanto, mais que um desenho bem feito, o desenho parece se configurar como um exercício de olhar. Desenhando até mesmo com auxilio de uma lupa, a artista inscreve em si mesma o encanto das formas, pêlos, volumes, detalhes, o desejo de reter o que de outra forma desaparecerá. Mais do que perpetuar na imagem desenhada, perpetuar em si mesma este olhar cuidadoso, que deseja ver melhor, de mais perto, com mais atenção.

Olhando as imagens, lendo os depoimentos da artista, penso em como eu mesma guardo coisas, como tento ver melhor as traças, as peles de cigarras. O desejo de reter a presença das coisas, dos seres, a necessidade de lidar com as mortes, as perdas.

Da mesma forma, relaciono a forma como a artista Julia Amaral, que participa de um diálogo com a Ana Elisa nesta revista, guarda os besouros e os transforma em jóias. Penso na maneira como o artista Diego Rayck, a partir de seu depoimento e do convívio próximo com o seu processo de trabalho, desenha, silencioso, olhando por horas, com o mais refinado olhar, as coisas que desenha.

A partir de algumas dessas relações, penso que desenhar possa ser uma forma de contato, de aproximação. Uma forma de conhecer, de se deter no mundo. Entendendo a palavra deter, tanto no sentido de demorar-se, como de conservar, reter. Penso que o desenho de Ana Elisa, mais que disciplina e preparação para a gravura, possa ser um pretexto para este olhar mais depurado, mais cuidadoso. É um pouco disso que Diego Rayck comenta, quando lembra da relação do avô com as ferramentas e os materiais de trabalho: um olhar cuidadoso.

Tento relacionar esta experiência de olhar com meu próprio processo de trabalho, especialmente quando passo a guardar e apresentar ‘coisas’ no espaço expositivo, e não fotografá-las. Penso em como é diferente ter na mão as traças, a poeira e tenho também na memória um outro trabalho da artista Julia Amaral, uma fotografia de uma raposa morta na piscina. A partir do impacto com esta imagem, sobretudo, tento comparar a experiência da fotografia, pois a fotografia, como o desenho, também é uma pratica. Começo a pensar na forma como Ana Elisa suporta o cheiro, a presença angustiante da morte, enquanto desenha. Como conciliar nesta experiência do ‘real’, os odores, as larvas que fazem a cabeça da cachorrinha mexer e este olhar atento, minucioso, demorado?

A experiência do olhar mediado e, sobretudo, acelerado da fotografia, se contrapõe a esse olhar demorado do desenho, experiência entre o olho e a mão. E pensando em como seria diferente fotografar estes animais mortos, me parece ainda mais relevante pensar no desenho como forma de aproximação, de introjeção dessa experiência com a morte. Ainda que a fotografia esteja indissociavelmente associada a morte, especialmente a partir das reflexões de Barthes, penso na fotografia como ausência, paradoxo entre a conexão e a perda do referente. E penso no corte espaço-temporal, na distância, com que a fotografia opera (e que se contrapõe ao seu princípio indiciário). Como o teórico Phillippe Dubois ressalta, o corte espaço temporal marca um efeito de abalo, de defasagem, de vazio, onde o índice vinha marcar um efeito de certeza.

Dessa forma, por mais vinculada fisicamente que esteja ao seu referente, a fotografia permanece absolutamente separada dele. Entre a imagem e o referente existe uma fissura. Ao tentar salvar o referente do desaparecimento, a fotografia o faz desaparecer. O desenho, no entanto, articula de forma inteiramente diferente estas relações com o referente: ao mesmo tempo que não possui nenhuma fisicalidade com o objeto ou ser representado, pois é ‘coisa mental’, a experiência de olhar, de traduzir, de se aproximar, implica numa depuração do olhar. Na possibilidade, ou potencialidade, de inscrição do ‘real‘ em si mesmo, como se a artista procurasse gravar por dentro, não no papel ou na matriz, mas em si enquanto experiência. Como se fosse possível perpetuar, guardar em si mesma a fragilidade, a perda e a morte irremediável de todas as coisas.

Aline Dias
artista, integra a equipe do Museu Victor Meirelles
e da revista Um ponto e outro