Maria Salete Borba
Doutoranda em teoria literária UFSC – Bolsista CNPq
Fotografar é atribuir importância.
Susan Sontag
Susan Sontag no livro Sobre fotografia (1) realiza seis ensaios a respeito da fotografia e uma homenagem ao escritor Walter Benjamin que tem como resultado uma “breve antologia de citações”. No capítulo chamado “Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio”, a escritora trabalha com a desmistificação da fotografia:
Nas primeiras décadas da fotografia, esperava-se que as fotos fossem imagens idealizadas. Ainda é esse o objetivo da maioria dos fotógrafos amadores, um pôr-do-sol. Em 1915, Edward Steichen fotografou uma garrafa de leite na saída de emergência de um prédio, um exemplo remoto de um conceito totalmente distinto do que é uma foto bela. […] Em décadas recentes, a fotografia conseguiu, em certa medida, promover uma revisão, para todos, das definições do que é belo e do que é feio – na linha proposta por Whitman. Se (nas palavras de Whitman) “todo objeto ou condição ou combinação ou processo exibe uma beleza”, torna-se superficial privilegiar certas coisas como belas e outras não. Se “tudo o que uma pessoa faz ou pensa é relevante”, torna-se arbitrário tratar alguns momentos da vida como importantes e a maioria como triviais.
De acordo com Sontag podemos dizer que o que passa a ser importante tanto no ato de fotografar, quanto nas escolhas realizadas durante o processo é a ênfase dada ao assunto. Por isso “fotografar é atribuir importância”. Partindo desse pressuposto passamos à leitura dos trabalhos da artista Fabiana Wielewicki realizados para a exposição 2ª Natureza que iniciou no dia 25 de abril de 2007 no Museu Victor Meirelles. Nessa exposição Fabiana apresenta sua pesquisa que, nesse momento, está centrada na construção de paisagens em que ora explora sua relação com a paisagem vista da janela de seu apartamento, ora com a paisagem que a própria artista almeja ter: a paisagem marinha. Através da fotografia Fabiana reconstrói a paisagem do seu cotidiano e, ao mesmo tempo, coloca determinados elementos em evidência como ocorre, por exemplo, com plantas de plástico, imagens de mar ou de pôr-do-sol que, paradoxalmente, a atraem e a repelem.
A fotografia que tanto captura o momento ímpar da contemplação, quanto à paisagem desdobrada através da montagem de imagens que, na maioria das vezes, são consideradas banais. Essa paisagem é constituída por elementos da cultura de massa que contrastam com a paisagem natural e urbana da Ilha de Santa Catarina, como observamos na imagem ao lado (Sem título -da série 2ª natureza: 8º andar-, 2006). Nessa imagem o recorte da cidade é feito pelo uso de cortinas de plástico (black-out) e um pôster que representa um mar revolto. Esse mar não divide céu e terra, ele envolve os edifícios fazendo-os submergir em sua reserva, em sua fúria guardada nos mistérios das ondas e das correntes. Na imagem ao lado temos a fotografia da vista de uma das janelas do 8ª andar a qual é acrescida, anteriormente ao ato fotográfico, de um pôster que lembra as gravuras do artista japonês Katsushika Hokusai, em especial “The Great Wave off Kanagawa”.
Desse modo, a imagem do mar passa a ser um dos fios condutores do olhar nessa exposição; em alguns momentos contem em si a tranqüilidade, enquanto que em outros representa a fúria das águas. Como vemos, a imagem do mar que ainda instiga o olhar contemporâneo, já estimulou a imaginação de escritores e pintores como Julio Verne e Joseph Mallord William Turner durante toda a história, retorna no trabalho de Fabiana para falar de maneira indireta de uma sorte de mapeamento da cidade pela artista. O mar que circunda a ilha foi introduzido no interior da cidade como um elemento de deslocamento e contraste com relação à paisagem estática da vista: prédios e o morro. Esse deslocamento foi possível através da técnica da montagem (3) que captura a imagem do pôster e a introduz na vista do apartamento dando-lhe movimento. Temos por conseqüência um deslocamento do olhar, o que torna a paisagem múltipla, ou melhor, com múltiplas possibilidades de leitura.
Uma das leituras que podemos realizar é o diálogo com a história da arte, possível justamente pelo fato do uso de elementos e planos diversos. Se por um lado a montagem nos aproxima de artistas que se dedicaram aos estudos do mar, por outro lado somos levados ao encontro de artistas surrealistas como René Magritte, que em diversos trabalhos fez uso da “montagem” e da imagem da janela para falar da pintura e ao mesmo tempo questioná-la como já enfatizou Michel Foucault em Isso não é um cachimbo. É esse questionamento que pode ser lido em “La condition humaine” de Magritte. A ênfase dada por Magritte nessa pintura está visivelmente relacionada à desmistificação da pintura, mostrando através do deslocamento dos planos e do olhar um mundo duplicado e redundante. Evidencia, por outro lado, o caráter ficcional da pintura.
Podemos dizer que Fabiana em certos momentos faz uso da ficção como artifício para reorganizar seu espaço de contemplação. Imagens pertencentes ao universo kitsch são somadas às imagens naturais que, na maioria das vezes, funcionam como uma sorte de pano de fundo constituindo assim, paisagens híbridas em que a artista optou por chamar de 2ª natureza.
Ao desfocar a natureza – série Recantos – Fabiana inicia uma reflexão a respeito de uma outra realidade, não menos importante mas, mais dramática: uma realidade artificial. Nos “recantos”, por exemplo, Fabiana foca nas plantas de plástico atribuindo-lhes importância, mostrado através de cada encaixe que constituem a vegetação o caráter ficcional de sua fotografia que é constituída por um processo “performático” (6). É interessante lembrar que nessa mesma linha de pesquisa encontramos a artista Fiona Macdolnald (7) que constrói paisagens naturais para explorar a relação entre a natureza e as intervenções humanas. Na instalação “Island Unit” de 2005, a artista justapõe elementos de naturezas diversas: uma ilha artificial é colocada sobre uma cômoda que, tal como no trabalho de Fabiana, trás à baila a relação entre dentro e fora, interior e exterior enfatizado sempre a intervenção humana.
Nesse sentido, a ficção pode ser considerada um dos métodos que Fabiana usa para dialogar paralelamente com a história da arte e o universo cotidiano refletindo sobre sua necessidade de demarcar o próprio território a partir de elementos comuns a todas as pessoas.
Notas:
(1) SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
(2) Katsushika Hokusai. “The Great Wave off Kanagawa”, 1832.
(3) A definição de montagem fixada por Sergei Eisenstein é a seguinte: “Um plano, um simples pedaço de celulóide, uma pequena moldura retangular, na qual está organizado, de determinado modo, o trecho de um acontecimento. ‘Unidos, esses planos formam a montagem – (…)’” GRÜNNEWALD, José Lino. A idéia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.p.106 O conceito montagem vem da área cinematográfica como temos conhecimento, foi um recurso que se tornou clichê dos anos de 1925 a 1930, pelo fato de ter sido usado como uma forma de organização soberana, como é assinalado por Chistian Metz em A significação no cinema. Metz chama a atenção para uma montagem que se esvazia, pelo fato de não abrir mão da utilização de outros recursos que não sejam a montagem pela montagem.
(4) Fabiana Wielewicki. Sem título (da série 2ª natureza: 8º andar ), 2006. Fotografia. 105 x 80 cm.
(5) René Magritte. “La condition humaine”. 1933.
(6) Durante as reuniões do grupo, em diversas ocasiões foram levantadas questões com relação ao processo de cada fotografia. Foi percebido que algo importante que medeia a fotografia de Fabiana é a sua “performance” pré-disparo do obturador.
Quero agradecer a artista Vanessa Roncalio que em agradáveis conversas sobre arte recomendou dos trabalhos de Katsushika Hokusai, Fiona Macdonald e entre outros. E lembrou também das primeiras gravuras realizadas por Fabiana Wielewicki no curso de Artes Plásticas da Universidade Estadual de Santa Catarina-UDESC, que já continham a janela como elemento da composição, assim como, a figura feminina de costas indicando o olhar. Sublinhamos também que o diálogo com o espaço em que habita vem sendo uma constante no processo artístico de Fabiana, ocorrendo desde o início de sua formação, como pode ser observado em diversas séries como, por exemplo, Paralaxe de 2000. Num dos trabalhos dessa série que faz parte do acervo de Fernando Lindote a técnica empregada é a fotomontagem recurso desenvolvido por um dos membros do círculo marxista de Berlim John Heartfield no início do século XX. Ele realizava cartazes com título e legendas (o que seria um emblema moderno) com o objetivo de fazer dá imagem uma ferramenta de educação política e moral. “No último período da Weimar, [John Heartfield] havia desenhado cenografias que incorporavam fotos, colocando as novas tecnologias de reprodução de imagens ‘conscientemente […] ao serviço da agitação política’.” [BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó: Editora Universitária Argos, 2002.] É interessante salientar que as experiências com fotomontagem realizadas por artistas como Heartfield são considerados façanhas marginais na história da fotografia.
(7) Fiona Macdonald. “Island Unit”, 2005. http://www.fionamacdonald.co.uk/ (ultimo acesso em 21 de abril de 2007)