Revista Eletrônica um ponto e outro nº 05 – Renata de Andrade
Revista do programa de exposições do Museu Victor Meirelles
Entrevista
UM PONTO E OUTRO – Fale um pouco sobre a sua biografia e a sua trajetória. Gostaríamos que você situasse seu trabalho atual relacionando com trabalhos ou reflexões anteriores.
RENATA DE ANDRADE – Fui estudar arte relativamente tarde, com 29 anos, depois de partir do Brasil. Fiz a academia Rietveld de Amsterdam, uma escola com tendências e estudantes internacionais, e durante todo o período do meu estudo fui ilegal na Holanda. Acho que isso influenciou muito a minha escolha de material: como no resto do mundo, os exilados ‘não existem’ socialmente – não tem direitos, segurança, moradia, etc. Quanto menos forem vistos melhor. Porque era muito pobre comecei a usar coisas achadas nas ruas como ‘motivos’ para minhas naturezas mortas (sou formada em pintura), mas logo descobri a beleza e o valor desse material descartado.
UM PONTO E OUTRO – Você possui alguma referência específica para o seu trabalho? Algum artista e/ou teórico com os quais você dialoga.
RENATA DE ANDRADE – Gosto do trabalho de Morandi, sua forma de aproximar as coisas – simples, direta e despojada. Gosto de Duchamp. E de lixo, pelos extremos que me propõe. O que vem da tv, novelas, seriados, filmes; histórias em quadrinhos, graffiti. Gosto de Gabriel Orozco, Francis Alys, Katharina Grosse…
UM PONTO E OUTRO – Comente um pouco os procedimentos de sua pesquisa: você faz muitos desenhos preparatórios? Como você elabora a composição? Como é o processo de construção dos trabalhos?
RENATA DE ANDRADE – Meu processo de criação é bem intuitivo, o acaso é muito importante no meu trabalho. Tudo que faço, encontro, coleciono – tudo pode ser visto como um produto final. As vezes me sinto como se fosse apenas um instrumento das coisas que monto – minhas pinturas, instalações, colagens, ‘assemblagens’. É um pouco como na improvisação do jazz: as imagens ‘montam-se’ elas mesmas, e eu não passo do instrumento dessa ação. Às vezes componho de uma forma simples, semi-lógica: objetos pequenos para composições pequenas, finos para trabalhos finos, grandes para etc.; mas o caos também me atrai muito. Tudo é possível, dependendo do resultado que se apresenta ou se deseja. Faço também rascunhos usando o programa Photoshop, para montar instalações imaginárias. Quanto ao graffiti, reproduzo os rabiscos que faço ao lado do telefone, por exemplo, ou os pequenos retratos copiados dos jornais.
UM PONTO E OUTRO – Qual é o papel da fotografia no seu trabalho?
RENATA DE ANDRADE – Uso fotografia para documentar ‘instalações alheias’ (lixo e objetos abandonados nos espaços públicos e privados). Essas fotos podem se tornar um detalhe numa instalação maior (junto ao lixo, mural, graffiti, etc), ou podem ser vistas separadamente, como um trabalho em si. Acho muito interessante esse diálogo entre o real e a representação – as duas e três dimensões comentando sobre a mesma coisa.
UM PONTO E OUTRO – Fale sobre as relações entre o seu trabalho e a pintura.
RENATA DE ANDRADE – As leis pictoriais – composição, cor, linha, forma, estrutura, etc. – são para mim muito importantes. Apesar de construir instalações, minha aproximação continua sendo através da pintura, onde as cores e a composição comandam. Na verdade, continuo a fazer pinturas tri-dimensionais – só que mais ambiciosas, porque anseio o espaço em si, assim como o espaço público, as ruas.
UM PONTO E OUTRO – Fale sobre o seu processo, o acúmulo, apropriação e a montagem de seu trabalho.
RENATA DE ANDRADE – Primeiro fazia pinturas a óleo com os objetos achados, depois comecei a colar coisas nas superfícies dos quadros. Logo passei a usar os objetos eles mesmos de uma forma pictorial, criando instalações. Para mim, as coisas abandonadas nas ruas transformaram-se em esculturas quando comecei a transportá-las ao meu ateliê. A montagem se dá de modo simples, intuitivo, dependendo das cores e das formas usadas. Geralmente combino os objetos achados com fotos ou cartazes (de entulho) e graffiti (tinta spray: manchas coloridas e rabiscos, mas também uso máscaras de figuras recortadas e retratos tirados dos jornais).
UM PONTO E OUTRO – Como se dão as escolhas? Como você escolhe os materiais e as cores? Você escolhe o lixo levando em conta alguma tipologia ou critério classificativo?
RENATA DE ANDRADE – Gosto de cores fortes, de formas definidas. Meu sótão esta repleto de plástico, isopor, madeira, cartolina, caixas, tapetes, tudo que não se desfaz organicamente considero material a ser usado. As possibilidades são muitas, não só com relação ao material mas também quanto ao contexto – o espaço onde monto meu trabalho, seja ele público ou privado.
UM PONTO E OUTRO – Como é o processo de limpeza do lixo?
RENATA DE ANDRADE – Limpo os objetos dependendo do resultado desejado. Por exemplo, houve uma época em que usava muito garrafas de plástico (grandes e pequenas) para montar esculturas, mas as etiquetas atrapalhavam a experiência da cor, da forma, do tamanho – as marcas e o texto transmitiam uma mensagem para mim indesejada. Portanto limpava todas as garrafas. Quando os objetos que uso ou monto são pequenos, ‘de mesa’, geralmente os limpo. Objetos grandes não limpo, mesmo porque passei a considerar o pó acumulado como parte do caráter dos mesmos. Nunca coleto coisas imundas, onde alguma forma de ‘vida’ orgânica esteja ocorrendo (mofo, etc).
UM PONTO E OUTRO – Você em seu trabalho procura falar do lixo em si ou do seu descarte pelo homem ou pela indústria?
RENATA DE ANDRADE – Esses dois aspectos me ocupam – ou melhor dizendo: me preocupam. O imenso lixo produzido, abandonado, reciclado, revivido. As implicações da superprodução, as relações entre a riqueza e a extrema pobreza, o valor perdido mas ainda existente, a beleza não reconhecida ou não vista.
UM PONTO E OUTRO – Como você vê a questão do lugar do lixo e o lugar da obra? Como estas situações se relacionam com o seu trabalho?
RENATA DE ANDRADE – Desde que comecei minha pesquisa visual me ocupo com a tensão entre o que é e o que não é arte – o contexto, a cultura, a linguagem do modernismo. Usar lixo como material foi para mim um passo natural por causa do rumo que minha vida tomou, mas nesse momento não consigo pensar em melhor material para trabalhar minhas idéias. Na verdade, meu discurso se refere ao fato de que tudo em torno pode ser assimilado como arte, é só uma questão de abrir o olhar, a maneira de ver as coisas. A instalação no museu é como a instalação na rua, a diferença é o olhar direcionado ou não. Num futuro plauzivel, as pessoas veriam qualquer lixo acumulado como uma obra minha!
UM PONTO E OUTRO – Você compra alguns materiais para agregar ao trabalho? Quais?
RENATA DE ANDRADE – Só compro os suportes e as tintas que uso: linho, tinta a óleo, tinta spray, sacos de lixo. Além disso, faço uso da fotografia e de cartazes impressos. Tento comprar o mínimo possível, e estou procurando uma alternativa para a tinta spray, pois é um produto muito danoso para a natureza.
UM PONTO E OUTRO – Como você pensa o lixo e o grafite nesses dois contextos: o brasileiro e o europeu?
RENATA DE ANDRADE – O graffiti holandês é, na minha opinião, um de identidade, de usar palavras para determinar domínios e criar uma estética exuberante. O brasileiro já acho mais um de contador de histórias, faz muito mais uso da ilustração de uma forma literal e/ou abstrata, apesar do aspecto da identidade também estar presente de forma mais simples. Há no Brasil mais variedade, eu acho, não só no uso de máscaras, cores, mas das formas – com ou sem texto. A intensidade do graffiti, a maneira anárquica como toma o espaço publico, isso é o que mais me atrai nessa forma de arte.
UM PONTO E OUTRO – Como você está vendo a idéia de montar esta exposição no Museu Victor Meirelles?
RENATA DE ANDRADE – Estou muito curiosa com a resposta do público, ainda mais porque o MVM é um museu elegante, com sua arquitetura colonial. Esse diálogo me parece muito interessante, rico.
UM PONTO E OUTRO – Você já tem algo premeditado para esta exposição?
RENATA DE ANDRADE – Quero montar na sala do museu alguns murais com lixo, fotos e graffiti, além de colocar uma série de retratos/graffiti nas paredes. Fora do museu, nas ruas, pretendo montar uma ou duas instalações, da mesma forma. Se possível, gostaria de montar uma dessas instalações no próprio muro externo do museu. Mas estou aberta para outras possibilidades.
UM PONTO E OUTRO – Como você pensa a apresentação do trabalho no espaço expositivo? O que você poderia comentar sobre a montagem específica para esta exposição?
RENATA DE ANDRADE – Sempre uso o lixo reciclável que o museu, as instituições, e o pessoal envolvido coleciona para mim no período antecedente às exposições. No caso do MVM, a idéia original era a de usar a sobra de material usado nas obras de restauração programadas para junho de 2007, criando assim uma ‘obra’ organicamente relacionada a esse momento do museu. Mas como essas obras foram adiadas, e considerando o pouco tempo disponível para o museu coletar o material necessário, farei uso do lixo que a cidade coleta. Normalmente eu entro em contato com os projetos de coleta urbanos e compro o material que acho necessario para a montagem da exposição.
UM PONTO E OUTRO – Você pretende trazer algum material de Amsterdã?
RENATA DE ANDRADE – Quero levar alguns dos retratos/graffiti que tenho feito nos últimos meses. São reproduções de retratos que coleciono dos jornais, que desenho e pinto em caixas de papelão de frutas e legumes, estas coletadas nas ruas. Essas caixas eu abro, desmonto, e uso como base para meu discurso pictorial – inclusive o design e as cores próprias das caixas. Como já mencionei, sou uma pintora. Uma das minhas especialidades é a pintura de retratos. Esses retratos/graffiti que estou pintando agora estão destinados a retornar ao domínio público, ou seja, quero (re)colocá-los nas ruas, como parte de instalações, devolver ao meu público aquilo que tomei. O nome da exposição no MVM é gratis: todo o trabalho exposto no museu (com a exceção de um retrato/graffiti) será devolvido às ruas.