Por Victor da Rosa
Ensaísta, bacharelando em Letras pela UFSC.
É autor das narrativas de “piano e flauta – fragmentos de um romance” (Lumme Editor, SP, 2007)
e foi curador da exposição coletiva “Desvio para o vento”. Outros de seus textos podem ser lidos em www.literaturamenor.blogger.com.br
O que há de você na água?
Manoel de Barros.
A cidade de Martinho de Haro – Florianópolis – é líquida. Há sempre um azul que se derrama. É certamente no vazio que o pintor se mostra: outra cidade. Penso que a singularidade de sua paisagem é apreendida não pelo que há de monumento: o casario, as construções históricas, a ponte – ou seja, o ícone representado na sua absoluta estabilidade, como se lê – mas pelo que há de mais suplementar, disperso: a umidade e todo o aspecto líquido da imagem de uma cidade que se faz. O úmido, na cidade de Martinho, invade tudo.
Tanto na exposição que segue no Museu de Arte de Santa Catarina quanto no catálogo recentemente publicado, “A Florianópolis de Martinho de Haro” (Tempo Editorial) – ambos realizados em comemoração ao centenário do artista – é possível perceber o excesso de azul quando Florianópolis torna-se cenário. Em três ou quatro paisagens de Martinho já pode ser vista toda variação de azul, como se cada céu fosse um desejo novo de apreensão da cidade, cada mar. Se a paisagem e a figuração se repetem, se os temas se repetem em Martinho, o azul é aquilo que, a cada aparição, é mais uma vez singular – o que faz pensar, aliás, que a obsessão do artista pelas repetições só pode ser justificada pela diferença do céu, e não pelas construções, que são sempre as mesmas. A cidade, assim, é feita de água.
No azul também a cidade se torna informe: onde há dispêndio de tinta, exercício de linguagem, e não mais a economia de traço que forma a representação, enfim: onde a figura é pura turbulência – é no azul, ainda, que a cidade é ameaçada pelo aspecto de fúria no vazio. E é no céu que a pintura chega ao limite da abstração, quase gestual e desconhecida. Não há representação possível do céu – por isso, talvez, o artista use tantas tonalidades diferentes para apreendê-lo, e tantos estados, sempre variável. O azul de Martinho é promessa de crise, aparece sempre enquanto uma tempestade iminente, destruição, e não somente harmonia. Não poderia ser dito, afinal, que há um desastre em potência na obra do artista?
Vale dizer que nos dois quadros em que Martinho parece representar outra paisagem, provavelmente um campo, presentes logo na entrada da exposição do MASC – primeiro o “Tropeiros” (Sem data) e, depois, “O Cavalo e o Peão” (1937) – além de uma figuração mais estável, a construção da pintura é seca, o traço é duro e fechado, a cor mais escura, árida – o que pode indicar, portanto, que a umidade de Martinho está ligada diretamente a Florianópolis. Nestes dois quadros, ainda, o foco é na figura humana que aparece sempre no centro do quadro – e não mais na força inumana que marca os céus e os mares pintados pelo artista.
Em alguns quadros de Martinho, principalmente quando olha o Cais – tendo ao fundo o Largo da Alfândega, o Mercado, a Rua Francisco Tolentino, Rita Maria e Hoepcke – uma segunda imagem da cidade se forma na água. Então a figuração das construções se dobra para um aspecto meio fantasmático de uma cidade que, agora refletida no mar, embora também se mostre aos nossos olhos, certamente, ela se esconde atrás de um traço vago, na fronteira da abstração. Trata-se de uma falsa aparição, portanto – da cidade em sombras. Desta maneira, uma outra cidade se faz inteira na água, líquida e fugidia. Fico com impressão de que o artista está a todo tempo procurando formas de abstrair a imagem, tornar opaca a transparência da representação, mas nunca se lança na completa ausência da figura.
Mas há ainda outra pintura que pode ser pensada a partir do procedimento de abstração: “Baía sul” (1974). Nesta imagem, quase todo o quadro é ocupado pelo azul e o verde: o vazio – céu, mar, montanhas. De um ponto de vista panorâmico, Martinho esquece a cidade para vislumbrar o horizonte. Na parte inferior do quadro, as construções se tornam pequenas – a natureza cresce. Barcos e qualquer aparição humana são desprezíveis se comparados com o céu. E esta não é a única das pinturas de Martinho em que a cidade é engolida pelo azul. Há uma série de Cais – que, diga-se, é o lugar de passagem por excelência, onde todas as relações são líquidas – em que o concreto é praticamente uma linha no meio do quadro, é segundo plano, dando lugar, mais uma vez, ao azul.
Levando ao limite esta proposição, sugiro ainda que grande parte do concreto se esconde e se mimetiza na umidade do traço. A construção pictórica dos barcos, muitas vezes, se confunde com a água. Figuras humanas, quando aparecem, são traços derramados. Mesmo quando a natureza deixa de ser o centro e a construção ocupa todo o quadro, como na pintura “Rua General Bittencourt” (1965), o traço é claramente líquido, e também as construções se tornam escorregadias, portanto. É como se a vagueza da água invadisse a cidade inteira. A Florianópolis de Martinho, mesmo concreta, é úmida.
Como se fosse um contínuo viajante a olhar a cidade – é sempre importante lembrar que Martinho nasceu em São Joaquim e chegou a Florianópolis como um estrangeiro, somente no ano de 1942, depois de passar por Rio de Janeiro e Paris – o ponto de vista do artista é, muitas vezes, do mar. Como se, mais uma vez, tivesse sempre chegando a uma cidade desconhecida. De onde nos olha Martinho? O que, afinal, está querendo ver? Talvez olhe de um lugar inseguro, impreciso. E é como se este olhar invadisse sua pintura e, líquido, fosse a própria paisagem: uma coisa só.